O juiz, a carteirada e o camarote
Matheus Pichonelli – 4 horas atrás
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Há um aspecto simbólico (aliás
muitos) na condenação de uma agente de trânsito pela ousadia de parar um juiz
numa blitz no Rio de Janeiro*. O magistrado, como se sabe, infringia a lei ao
dirigir uma Land Rover sem placa e sem documentação. A funcionária que o autuou
foi condenada por lembrar o óbvio ao doutor: juiz não é Deus. Em outras
palavras, a lei vale para todos.
A primeira lição do episódio é
que, por essas bandas, o óbvio nunca é assim tão óbvio. Tanto não é óbvio que
ofende, gera processo, pune. Ao menos Josef K., personagem de Franz Kafka em O
Processo, desconhecia os motivos de sua perseguição. No caso da
profissional, as razões vinham em cores gritantes: no Brasil há cidadãos de
primeira e de segunda categoria, e só estes últimos estão, ou deveriam estar,
sujeitos à lei. A sentença, se não conferia ao magistrado uma entidade divina,
ao menos o garantia na primeira classe.
A condenação não poderia ser mais
revoltante – e, no entanto, não poderia fazer mais sentido. Num país onde parte
dos magistrados aposentados segue desfrutando de apartamentos funcionais,
mantém sociedade em institutos de ensino, aceita patrocínios privados para
eventos de classe, solta banqueiro corrupto e condena o policial que o
investigou, o juiz da carteirada apenas agiu no conforto de quem sabe onde
pisa. A carteirada, de toda forma, diz muito sobre as fragilidade e
contradições de um dos pilares dos Três Poderes, embora, com a repercussão do
caso, tenha sido alvo de críticas dos colegas e do próprio Conselho Nacional de
Justiça.
Fato é que a negação de um
servidor público em agir, na vida pública e privada, como um servidor revela,
em si, o desprezo pela ordem semântica da própria função. Reitero: desprezo não
é ignorância. Esse desprezo coloca em xeque o próprio funcionamento da Justiça
em caixa alta: ela nem sempre está a serviço da justiça em caixa baixa.
A repercussão da carteirada nas
redes sociais deixou claro, no entanto, que essa construção da barreira
simbólica entre cidadãos de primeira e segunda categorias já não é aceita como
antes. A mudança das relações de poder, mais horizontais que verticais, tende a
incutir o elemento da petulância, no ótimo sentido, a esse tipo de abordagem.
Sai o “sim senhor” dos subordinados e entra o “quem você pensa que é?” dos
indivíduos conectados e cientes dos próprios direitos. Essa é a boa
notícia.
A má é que essa transição só será
completa quando compreendermos uma aparente contradição: o mundo que caminha
para estabelecer relações horizontais entre professores e alunos, líderes
religiosos e fieis, pais e filhos, representantes e representados é o mesmo que
estimula a obsessão pelo camarote. Explico. Há alguns anos, conforme contei
numa crônica antiga (clique AQUI), assisti
incrédulo à cerimônia de colação de grau de uns formandos em odontologia em uma
tradicional universidade pública. Lá o discurso de professores e coordenadores
era uníssono: “comemorem, nobres formandos, vocês são uma casta privilegiada:
poucos conseguem entrar em nossa faculdade, e pouquíssimos conseguem sair dela
formados. Vocês representam 0,00000001% da população que tiveram esse
privilégio”.
Num país onde ter dente ou não é
razão suficiente para colocar indivíduos em primeiras, segundas e terceiras
categorias, nada poderia soar tão anacrônico, mas aquele discurso não saiu do
nada: o discurso do vencedor, por aqui, sempre esteve associado ao privilégio,
e quase nunca às missões inglórias – entre as quais a possibilidade de usar o
canudo para minimizar os efeitos de um país devastado em sua origem, das
capitanias hereditárias à escravidão, passando pelos açoites, regulamentados ou
não, das relações humanas. Essa perversidade nos legou um país de banguelas e
aquela formatura era a graça da desgraça do banguela de que fala a música de
Zeca Baleiro.
A mesma lógica (“não sou qualquer
um”) levou, recentemente, uma professora universitária a fazer galhofa, em
público, sobre um passageiro mal vestido no aeroporto. E levou uma jovem
jornalista a se queixar, também em público, da segurança da balada por
obrigá-la a pegar fila mesmo após ser avisada de que era jornalista, e não uma
simples mortal. A carteirada, portanto, é quase um patrimônio. É mais grave,
obviamente, quando oferecida por um servidor público, mas a origem da serventia
é uma base tentacular de um país onde privilégios são vistos
como direitos, e direitos são vistos como favores, como definiu
brilhantemente o jornalista Luiz Fernando Viana em uma coluna recente na Folha
de S.Paulo.
As sucatas dessa transição podem
ser encontradas na separação entre o elevador de serviço e o elevador “social”.
Ou no uso de ascensoristas para levar o patrão direto ao andar desejado sem ser
incomodado. Ou nos slogans de propagandas para atrair os clientes prime.
No Brasil o status é calculado pelo tamanho da fila: uns simplesmente adquirem,
por dinheiro ou mérito próprio, o direito de dispensá-la. Ainda que esta fila
seja a própria lei.
Matheus
Pichonelli
Matheus Pichonelli é jornalista e
cientista social. Trabalhou em veículos como Folha de S.Paulo, Gazeta
Esportiva, portal iG e CartaCapital, onde mantém uma coluna sobre sociedade,
cinema e comportamento. Neste blog, analisa as ações e discursos comuns de políticos
e eleitores em um país ainda sequestrado pelo sufixo “ismo”: o racismo, o
patrimonialismo, o machismo, o sexismo e o paternalismo