quinta-feira, 18 de setembro de 2014

É Lícita a Cobrança de Corretagem e SATI do Comprador de Imóvel Novo ? – É Devida Indenização pelo Atraso da Obra ?


   


Neste caso julgado recentemente no Tribunal as questões mais atuais envolvendo a compra de imóveis na planta foram examinadas. Penso que a solução dada a essas recorrentes questões representa hoje a tendência da jurisprudência e pode orientar consumidores e fornecedores em suas decisões. Ao final indico o link para acesso ao Acórdão do Tribunal de Justiça de São Paulo do qual fui relator.
E M E N T A
APELAÇÃO. PRELIMINARES DE FALTA DE INTERESSE DE AGIR E ILEGITIMIDADE PASSIVA AFASTADAS. COMPROMISSO DE COMPRA E VENDA. ATRASO NA ENTREGA DA OBRA.
1. Na data do ajuizamento da ação a ré já estava em mora no tocante ao cumprimento das obrigações que contratualmente assumiu, causando inegável prejuízo aos autores, de modo que possuíam interesse de agir para os pedidos de obrigação de fazer e de indenização.
2. Pretensão da ré ao reconhecimento da ilegitimidade para figurar no polo passivo da demanda, pois parte dos danos sofridos pelos autores não foi por ela causado, mas em razão de relação mantida entre os adquirentes de imóvel e a corretora de imóveis. Os autores representam a parte vulnerável na cadeia de consumo em exame. Não podem, portanto, ficar sujeitos às relações obrigacionais mantidas entre os fornecedores. Diante da prova do prejuízo sofrido, devem ser indenizados por qualquer dos fornecedores em virtude da solidariedade existente entre eles no dever de reparar. A busca é pela reparação efetiva e rápida, de modo a proteger o consumidor, hipossuficiente na relação (art. 6º, inc. VI, do Código de Defesa do Consumidor). Assim, nestas circunstâncias, a ré, que escolheu seus fornecedores, é parte legítima para o pedido indenizatório e deve responder objetivamente pelos danos causados aos autores.
3. Atraso na entrega das chaves. Não há como afastar a responsabilidade pela mora no cumprimento da obrigação, visto que empresa do porte da ré, que atua há anos no mercado, deve se ajustar a eventuais embaraços para finalizar a obra que se comprometeu a vender.
4. Lucros Cessantes. A indenização por lucros cessantes corresponde à privação injusta do uso do bem e encontra fundamento na percepção dos frutos que lhe foi subtraída pela demora no cumprimento da obrigação. O uso pode ser calculado economicamente pela medida de um aluguel, que é o valor correspondente ao que deixou de receber ou teve que pagar para fazer uso de imóvel semelhante. A base de cálculo da reparação por lucros cessantes ou percepção dos frutos deve ser fixada em percentual equivalente a 0,5% sobre o valor atualizado do imóvel.
5. Comissão de corretagem e taxa de serviços imobiliários – SATI. A contratação forçada dos serviços pelo comprador do imóvel representa prática abusiva, definida no art. 39 do Código de Defesa do Consumidor. O consumidor não tem escolha e acaba por aceitar as condições impostas ilicitamente pelo vendedor e seus prepostos. Daí o direito de restituição que deve ser reconhecido.
6. Despesas condominiais referentes aos meses de junho e julho de 2011 que também devem ser reembolsadas pela ré. O contrato estabelece a responsabilidade dos autores pelo pagamento de tais despesas somente após a conclusão das obras e recebimento das chaves, o que só ocorreu em agosto de 2011.
7. A compra da casa própria gera expectativas e esperanças que, no caso em exame, acabaram frustradas. A conduta da ré seguramente afetou a dignidade dos adquirentes, que não puderam usufruir do bem adquirido no tempo esperado. Assim, embora a questão trate de inadimplemento contratual – risco inerente a qualquer negócio jurídico –, justifica-se o pedido de reparação por danos morais.
8. Indenização por dano moral fixada em R$ 5.600,00. Valor insuficiente a reparar o dano. Majoração a R$ 10.000,00.
Dou parcial provimento aos recursos, nos termos explicitados.
V O T O 
1. – Apelaram as partes da sentença proferida pelo Doutor OG CRISTIAN MANTUAN que julgou parcialmente procedente o pedido para condenar a ré a devolver aos autores as quantias dispendidas a título de SATI (Serviço de Assessoria Imobiliária), comissão de corretagem e despesas com taxas condominiais, bem como, para condenar a ré ao pagamento de indenização por danos morais no valor de R$ 5.600,00.
Os autores sustentaram que são devidos lucros cessantes em razão do atraso na entrega das obras, que, nesse caso são presumidos e independem da destinação que pretendiam conferir ao bem. Sustentaram, ainda, que o valor da indenização por dano moral não é suficiente para compensar o sofrimento enfrentado e desestimular condutas semelhantes da ré. Por fim, requereram que os ônus da sucumbência sejam integralmente imputados à ré.
A ré, por sua vez, sustentou que: a-) os autores não possuem interesse de agir para ajuizamento da presente ação, pois o termo de transferência de posse do imóvel se reveste de todas as formalidades e requisitos necessários; b-) é parte ilegítima para figurar no polo passivo da demanda quanto a devolução dos valores pagos a título de SATI, comissão de corretagem e despesas condominiais; c-) concluiu a obra no prazo estipulado, mas não pode entregar as chaves por motivo de força maior, em razão de exigências administrativas; d-) os autores concordaram com o pagamento da SATI e da comissão de corretagem ao assinarem o contrato, legitimando a sua cobrança; e-) afastada a mora em razão da ocorrência de fato maior, não está obrigado ao pagamento de qualquer indenização; f-) os autores não comprovaram os dano morais sofridos; g-) há previsão no contrato responsabilizando os autores pelo pagamento das despesas condominiais.
As partes responderam aos recursos.
É o relatório.
2. – Inicialmente, não há que se falar em carência de ação, seja por falta de interesse de agir, seja por ilegitimidade de parte.
Embora a posse do imóvel negociado entre as partes tenha sido transferida aos autores no dia 11/08/2011, na data do ajuizamento da presente ação, como será visto, a ré já estava em mora no tocante ao cumprimento das obrigações que contratualmente assumiu, causando inegável prejuízo aos autores, de modo que possuíam interesse de agir para os pedidos de obrigação de fazer e de indenização.
De outra parte, cumpre esclarecer que foi o descumprimento culposo do contrato pela ré que ensejou o pedido de reparação de danos correspondente às despesas condominiais que os autores tiveram de pagar antes da imissão de posse. As despesas de corretagem e SATI, por sua vez, constam do quadro resumo do negócio jurídico do qual participou como compromissária vendedora. Logo, irrefutável a sua legitimidade passiva para responder a todos os pedidos deduzidos na inicial.
As partes celebraram, em 20/01/2008, compromisso de compra e venda para aquisição da unidade 63, torre 02B, do Condomínio Parque Clube, empreendimento da ré na cidade de São Paulo – SP, cuja conclusão estava prevista para outubro de 2010, com prazo de tolerância de 120 dias (cláusula 4.6 – fls. 91).
A fixação de prazo de tolerância é praxe em contratos dessa natureza e no caso dos autos, o prazo de 120 não se mostra abusivo, sendo inferior, inclusive, ao usualmente adotado pelas construtoras e imobiliárias. Ainda assim, observa-se que somente em agosto de 2011 os autores receberam a posse do apartamento que lhes fora prometido à venda (fls. 301/302), ou seja, após seis meses de atraso.
Citada, a ré afirmou que concluiu as obras no prazo previsto, mas que a demora na entrega das unidades se devia às exigências administrativas para obtenção do respetivo Auto de Conclusão. A alegação de entraves na expedição do “habite-se” pela Prefeitura, contudo, não pode afastar a responsabilidade pela mora no cumprimento da obrigação. Cuida-se do que se convencionou chamar fortuito interno, que não tem poder liberatório da obrigação.
A esse respeito esclarecem CRISTIANO CHAVES DE FARIAS e NELSON ROSENVALD: “Constatada a ocorrência do fato inevitável e necessário, o efeito será a exclusão de qualquer obrigação de indenizar por parte do devedor. Todavia, em certos casos o fortuito não será óbice à responsabilização do devedor. [...] c) em sede de responsabilidade civil, existem casos em que o fato danoso não resultou da culpa do agente, mas de uma situação que se liga diretamente aos riscos da atividade profissional exercitada pelo causador do dano. Cuida-se da figura do fortuito interno, cujo risco vem de ‘dentro para fora’ e culmina por se tratar de um evento evitável pro parte de quem assumiu a atividade” (Direito das Obrigações, Ed. Lumen Juris, 2011, p. 531/532).
A existência de exigências administrativas para construção e entrega do imóvel, tais como a concessão do “habite-se”, é circunstância conhecida pela ré, empresa que, de acordo com seu estatuto social, dedica-se construção e comercialização de imóveis (fls. 181), e, portanto, deveria ter sido considerada no momento da contratação, quando fixou a data prevista para a entrega do imóvel aos autores e o prazo de tolerância admitido.
Nesse sentido, oportuno lembrar o voto do Desembargador LUIS FRANCISCO AGUILAR CORTEZ, no julgamento de caso análogo: “os problemas administrativos enfrentados na obtenção das licenças ambientais não podem ser considerados causas de suspensão dos prazos para o início das obras de construção do loteamento, porque tais circunstâncias, em decorrência da natureza do contrato e atividade desenvolvida pelas promitentes vendedoras, não são fatos imprevistos ou não inevitáveis” (TJSP – Ap. nº 9067923-17.2005.8.26.0000 – j. 23/08/2011).
Prometido à venda o imóvel com a estipulação de prazo certo para a sua entrega, deve o compromissário vendedor, que tem recebido as prestações pactuadas, entrega-lo no prazo previsto, não podendo a alegação de dificuldades na obtenção do “habite-se” servir para que se exima de cumprir a obrigação contratualmente assumida perante os compromissários compradores.
Dessa forma, verificada a culpa exclusiva da ré pelo descumprimento do contrato, é devida a indenização como forma de ressarcir os danos ocasionados aos autores (art. 389 do Código Civil).
Se houve injustificado descumprimento do contrato, é dever da ré ressarcir os autores pelos lucros cessantes que deixaram de usufruir em decorrência do atraso na entrega do bem. Esta indenização corresponde à privação injusta do uso do bem e encontra fundamento na percepção dos frutos que lhe foi subtraída pela demora no cumprimento da obrigação, e independe da finalidade afirmada pelos autores.
É nesse sentido a orientação da jurisprudência do Egrégio Superior Tribunal de Justiça em casos semelhantes:
“AGRAVO REGIMENTAL – COMPRA E VENDA. IMÓVEL. ATRASO NA ENTREGA – LUCROS CESSANTES – PRESUNÇÃO – CABIMENTO – DECISÃO AGRAVADA MANTIDA – IMPROVIMENTO. 1.- A jurisprudência desta Casa é pacífica no sentido de que, descumprido o prazo para entrega do imóvel objeto do compromisso de compra e venda, é cabível a condenação por lucros cessantes. Nesse caso, há presunção de prejuízo do promitente-comprador, cabendo ao vendedor, para se eximir do dever de indenizar, fazer prova de que a mora contratual não lhe é imputável. Precedentes…” (STJ – AgRg no REsp 1202506/RJ – rel. Min. Sidnei Beneti – DJe 24/02/2012).
“REGIMENTAL. COMPROMISSO DE COMPRA E VENDA DE IMÓVEL. LUCROS CESSANTES. PRECEDENTES. – Não entregue pela vendedora o imóvel residencial na data contratualmente ajustada, o comprador faz jus ao recebimento, a título de lucros cessantes, dos aluguéis que poderia ter recebido e se viu privado pelo atraso” (STJ – AgRg no Ag 692543/RJ – rel. Min. Humberto Gomes de Barros – DJ 27/08/2007).
“CIVIL. CONTRATO. COMPROMISSO DE COMPRA E VENDA DE IMÓVEL. RESOLUÇÃO POR CULPA DA CONSTRUTORA… LUCROS CESSANTES PELO VALOR DO ALUGUEL MENSAL QUE IMÓVEL PODERIA TER RENDIDO. PRECEDENTES … A inexecução do contrato pelo promitente-vendedor, que não entrega o imóvel na data estipulada, causa, além do dano emergente, figurado nos valores das parcelas pagas pelo promitente-comprador, lucros cessantes a título de alugueres que poderia o imóvel ter rendido se tivesse sido entregue na data contratada. Trata-se de situação que, vinda da experiência comum, não necessita de prova (art. 335 do Código de Processo Civil). Recurso não conhecido” (STJ – REsp 644984/RJ – rel. Min. Nancy Andrighi – DJ 05/09/2005).
Para esse fim, mostra-se razoável a imposição de aluguel equivalente a 0,5% do valor atualizado do imóvel. A esse respeito, convém lembrar o que decidiu o Tribunal, pelo voto do Desembargador CESAR CIAMPOLINI, no julgamento da apelação nº 9075940- 71.2007.8.26.0000, de sua relatoria:
“… segundo a Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas (FIPE) a taxa de aluguel, ou seja, a razão entre os valores anunciados de aluguel e venda de imóveis, na cidade de São Paulo, foi, no último mês de janeiro, de 0,51% (disponível no link: http://www.fipe.com.br/web/indices/fipezap/resease s/%C3%8Dndice%20FipeZAP%20%20Divulga%C3%A7%C 3%A3o%20201202.pdf, pg. 6). Logo, verifica-se que a fixação da taxa de aluguel em 1% enriquece, sem causa para tanto, o proprietário do bem. Vale destacar que o dado estatístico acima tem origem fidedigna, uma vez que, a FIPE é entidade ligada à Faculdade de Economia, Administração e Ciências Contábeis da Universidade de São Paulo, conhecida, inclusive, pelos índices econômicos que edita como, por exemplo, o tão aplicado Índice de Preços ao Consumidor (IPC). Nessa mesma linha, o art. 15- A da Lei de Desapropriações (Del. 3.365/1941), com redação dada pela MP 1.577/1997, limita em 6% ao ano o valor dos juros compensatórios. Antes da edição da referida medida provisória a jurisprudência normalmente fixava os juros compensatórios em 12% ao ano. Portanto, a redução que se faz por este voto consiste também em opção legislativa tomada em situação análoga, posto que os juros compensatórios em desapropriação destinam-se, exatamente, a compensar o expropriado pela perda da posse do bem sem a prévia e justa indenização. Situação que, como se vê, guarda perfeita analogia ao caso dos autos” (TJSP – j. 14/08/2012).
É nesse sentido o entendimento do Tribunal, particularmente dessa Câmara: Ap. n° 0349342-92.2009.8.26.0000 – rel. Des. ELCIO TRUJILLO – j. 05/06/2012; Ap. 0015427-98.2010.8.26.0224 – rel. Des. SALLES ROSSI – j. 13/07/2011; Ap. 0001520-88.2010.8.26.0084 – rel. Des. THEODURETO CAMARGO – j. 11/04/2012.
Quanto à restituição do valor pago a título de corretagem e SATI, está correta a sentença.
Quanto às verbas cobradas por supostos serviços de corretagem e de assessoria técnica (SATI), alegou a ré que seria parte ilegítima para responder pela restituição do valor cobrado a este título, pois não celebrou com os autores qualquer contrato neste sentido. Imputou à corretora de imóveis LPS Consultoria de Imóveis S/A. a responsabilidade pela cobrança.
Sucede que a ré escolheu o prestador de serviços que atenderia os compradores. A corretora de imóveis atuava em seu favor perante os adquirentes, que, seguramente, não fizeram distinção entre as empresas atuantes na cadeia de fornecimento.
Como esclarece Flávio Tartuce: “Deve-se atentar que, no fato do serviço ou defeito, há evidente solidariedade entre todos os envolvidos na prestação, não havendo a mesma diferenciação prevista para o fato do produto, na esteira do que consta dos arts. 12 e 13 do CDC. Isso porque é difícil diferenciar quem é o prestador direto e o indireto na cadeia de prestação, dificuldade que não existe no fato do produto, em que a figura do fabricante é bem clara [...] Na verdade, a tarefa de identificação de quem seja o prestador direto não poderia trazer a impossibilidade de tutela jurisdicional da parte vulnerável [...] Tais conclusões, sem dúvida, ampliam muito a responsabilidade dos parceiros de prestação.” (Manual de Direito do Consumidor, Direito Material e Processual, Ed. Método, 2012, p. 153/154).
Os autores representam a parte vulnerável na cadeia de consumo em exame e não podem, portanto, ficar sujeitos às relações obrigacionais mantidas entre os fornecedores. Diante da prova do prejuízo sofrido, devem ser indenizados por qualquer dos fornecedores em virtude da solidariedade existente entre eles no dever de reparar. A busca é pela reparação efetiva e rápida, de modo a proteger o consumidor, hipossuficiente na relação (art. 6º, inc. VI, do Código de Defesa do Consumidor). Assim, nestas circunstâncias, a ré, que escolheu seus fornecedores, é parte legítima para o pedido indenizatório e deve responder objetivamente pelos danos causados aos autores.
O documento juntado às fls. 55 demonstra que os autores desembolsaram a quantia de R$ 4.250,40 correspondente às comissões de diversos profissionais, sequer discriminados para fins de justificar a cobrança. O mesmo se observa em relação à SATI. Os autores não receberam a cópia do contrato de prestação de serviço de assessoria técnica imobiliária referente à cobrança no valor de R$ 1.962,40.
Não há qualquer indicativo de que estes serviços tenham sido prestados em favor dos autores e tampouco de que foram tidos como facultativos, à escolha dos adquirentes. A contratação forçada, imposta ao comprador do imóvel, representa prática abusiva e está definida no art. 39 do Código de Defesa do Consumidor.
A ré prevaleceu-se da fraqueza dos adquirentes para lhe impor a contratação de serviços. O consumidor não tem escolha e acaba por aceitar as condições impostas ilicitamente pelo vendedor e seus prepostos. Daí o direito de restituição que deve ser reconhecido aos autores das quantias que pagaram indevidamente (R$ 4.250,40 + R$ 1.962,40 – fls. 55).
“A contratação no mesmo ato da compra e venda imobiliária com outros de intermediação (corretagem) e de assessoria imobiliária (assessoria jurídica) sobre o mesmo empreendimento implica reconhecer a denominada “venda casada”, vedada pelo Código de Defesa do Consumidor no artigo 39, inciso I.” (TJSP, Ap. n. 0183974-85.2010.8.26.0100, rel. Des. Clóvis Castelo, j. 30-07-2012).
“Cobrança de serviços de assessoria técnico imobiliária. Ausência de informação adequada e clara sobre o serviço, contratado por mera nota em proposta de compra. Ausência de clara distinção em relação ao serviço de corretagem. Cobrança indevida. Restituição determinada. Não incidência do art. 42, § único do Código de Defesa do Consumidor. Sucumbência recíproca. Sentença reformada. Recurso parcialmente provido.” (TJSP, Ap. n. 9212356-17.2005.8.26.0000, rel. Des. Viviani Nicolau, j. 07-06-2011).
“Taxa SATI. Serviço de Assessoria Técnico Imobiliária. Ilegalidade confirmada. Nota inserida na planilha de cálculo sem qualquer discriminação específica quanto ao teor de tais serviços. Desrespeito ao dever de informação prevista no CDC. Cobrança afastada. Direito à restituição simples. Sentença parcialmente reformada. Sucumbência recíproca. Recurso parcialmente provido.” (TJSP, Ap. n. 0145152-90.2011.8.26.0100, rel. Des. Paulo Alcides, j. 30-08-2012).
As despesas condominiais referentes aos meses de junho e julho de 2011, no valor de R$ 668,00, também devem ser reembolsadas pela ré, porque a cláusula 15.2 do contrato estabelece a responsabilidade dos autores pelo seu pagamento somente após a conclusão das obras e recebimento das chaves (fls. 98), o que ocorreu em agosto de 2011 (fls. 301/302).
No que tange à indenização por danos morais, a compra da casa própria gera expectativas e esperanças que, no caso em exame, acabaram frustradas. A conduta da ré, que, postergou a entrega do apartamento por mais de seis meses, seguramente atingiu a dignidade dos adquirentes, que não puderam usufruir do bem adquirido no tempo esperado. Assim, embora a questão trate de inadimplemento contratual – risco inerente a qualquer negócio jurídico –, justifica-se o pedido de reparação por danos morais. Já decidiu nesse sentido o Tribunal em casos semelhantes:
“Isto porque, o procedimento inadequado das rés ocasionou angústia e desgosto aos autores, pois é notório que quem adquire o imóvel, contrai dívidas e efetua o pagamento regular das prestações, sente-se frustrado por não poder dispor do bem, sofrendo aflição psicológica, em razão do prolongado martírio de espera pela entrega da casa própria. Consequentemente, os danos extrapatrimonais se fazem presentes” (TJSP – Ap. nº 0044332-77.2008.8.26.0000 – rel. Des. João Francisco Moreira Viejas – j. 14.03.12).
“Indenização por danos materiais e morais. Compromisso de compra e venda de imóvel em construção. Apelados já firmaram contrato de financiamento com instituição financeira. Entrega das chaves não ocorreu. Inobservância do lapso cronológico pactuado. [...] Comportamento irregular da recorrente frustrou os recorridos, prolongando o martírio e trazendo aflição psicológica. Danos morais presentes. Verba reparatória compatível com as peculiaridades da demanda. Apelo provido em parte” (TJSP – Ap. nº 0001671-13.2011.8.26.0248 – rel. Des. Natan Zelinschi de Arruda – j. 06/10/2011).
É certo que a indenização deve ser fixada com moderação. Neste ponto, importante o esclarecimento de SÉRGIO CAVALIERI FILHO: “Na fixação do quantum debeatur da indenização, mormente tratando-se de lucro cessante e dano moral, deve o juiz ter em mente o princípio de que o dano não pode ser fonte de lucro. A indenização, não há dúvida, deve ser suficiente para reparar o dano, o mais completamente possível, e nada mais. Qualquer quantia a maior importará enriquecimento sem causa, ensejador de novo dano” (Programa de Responsabilidade Civil, Malheiros, 2003, 5ª ed., pág. 108).
A indenização por danos morais considera a natureza do dano, a capacidade econômica do ofensor e do ofendido e também o caráter pedagógico da reprimenda que poderá, assim, evitar novos abusos, ou seja, a dosimetria deve mostrar-se adequada à frustração e ao constrangimento experimentados pela parte e atender ao binômio mitigação da dor e desestímulo da reiteração de atos da espécie.
Respeitado entendimento do D. Magistrado, o valor da indenização por danos morais fixado na sentença em R$ 5.600,00 (cinco mil e seiscentos reais) deve ser majorado a R$ 10.000,00 (dez mil reais), valor que atende à moderação que se reclama nestes casos e está muito próximo aos valores adotados em condenações desta natureza de acordo com a orientação da jurisprudência, corrigidos a partir do julgamento deste recurso, nos termos da Súmula n. 362 do Egrégio Superior Tribunal de Justiça.
Reformada a sentença para admitir a condenação da ré ao pagamento dos lucros cessantes e majorado o valor da indenização, verifica-se a sucumbência mínima dos autores, de modo que cabe àquela o pagamento das custas e despesas do processo, bem como, dos honorários advocatícios. Não fosse por isso, a condenação ao pagamento de indenização por danos morais em importe menor ao pleiteado na inicial não implica em sucumbência recíproca (Súmula 326, STJ).
3. – Pelo exposto, DOU PARCIAL PROVIMENTO aos recursos para condenar a ré ao pagamento de lucros cessantes equivalentes a 0,5% do valor atualizado do imóvel por mês de atraso na entrega da unidade, que, afastada a abusividade do prazo de tolerância, compreende de março a agosto de 2011, bem como para majorar a indenização por danos morais a R$ 10.000,00. A ré arcará com as custas e despesas do processo e os honorários advocatícios, fixados em 10% sobre o valor da condenação.

Carlos Alberto Garbi  – relator –


O Transexualismo e a Retificação do Registro Civil e Documentos de Identificação Pessoal ( Relacionado ao caso 7)




Posted by carlosgarbi in Civil
 
Na área do direito de família e do direito da personalidade as mudanças sociais e dos costumes, bem como a maior liberdade reconhecida hoje no âmbito das relações privadas pessoais, tem trazido aos Tribunais, especialmente no Brasil, questões juridicamente novas.
É certo dizer que não é nova a manifestação do transexualismo, mas novo é o tratamento jurídico que se deve dar a este fenômeno social. O jurista não pode decidir com preconceitos, porque deve ter em conta que é preciso dar solução jurídica a realidade que não pode ignorar. Existem pessoas que, não obstante a morfologia masculina ou feminina, se identificam plenamente com outro sexo. São pessoas que sofrem não só o constrangimento social decorrente dessa contrariedade, mas igualmente sofrem todas as dificuldades jurídicas que esta situação impõe na prática dos atos e negócios jurídicos.
A propósito desta situação participei do julgamento no Tribunal, recentemente, de um caso que o requerente, transexual, pretendia a retificação do registro civil e dos seus documentos de identificação pessoal para fazer constar que é do gênero masculino. Essa pessoa já havia removido cirurgicamente os seios e pretendia fazer em breve a cirurgia de redesignação sexual. Ocorre que a sentença deferiu apenas a retificação do nome no registro civil, mas não de sexo. No Tribunal houve consenso sobre a mudança do sexo, mas a divergência se instalou quanto à publicidade da retificação. Prevaleceu o entendimento do Relator, que acompanhei com a declaração de voto que transcrevo a seguir, para restringir a publicidade da retificação.
O processo (Apelação nº 00028083-77.2009.8.26.0562, TJSP) correu em segredo de justiça e por isso o nome da parte não é revelado.
[ DECLARAÇÃO DE VOTO VENCEDOR ]
1. – O requerente pede a retificação do seu assento de nascimento para alteração de gênero, agora masculino, e do nome, agora adequado ao sexo masculino.
A sentença deferiu o pedido apenas para alterar o nome, negando a alteração do sexo no registro civil, daí o recurso de apelação.
2. – Respeitado o entendimento em sentido contrário, penso que o pedido do requerente deve ser deferido integralmente, nos termos exatos do erudito voto do Desembargador Beretta da Silveira, relator sorteado.
O que procura o requerente não é somente evitar o constrangimento de exibir o documento de identificação pessoal com o registro de gênero diverso da sua real identificação sexual. Pretende a retificação do registro civil para que lhe seja atribuída formal e legalmente a sua verdadeira identificação masculina, que sempre assumiu como portador de transexualismo.
Os documentos que se encontram nos autos dão prova convincente da manifestação do transexualismo e de todas as suas características, demonstrando que o requerente sofre inconciliável contrariedade pela identificação sexual feminina que tem hoje. Sempre agiu e se apresentou socialmente como homem e é seu desejo inarredável mudar a sua definição sexual no registro civil.
Colho do parecer subscrito pelo Culto Procurador de Justiça, Doutor Almir Gasquez Rufino, quando oficiava em primeiro grau no Foro Regional do Tatuapé, na Capital, importantes subsídios a respeito do tema que, pela excelência do trabalho, me permito reproduzir:
 “Apreciados os elementos de prova coligidos, deve-se agora ressaltar que a situação do requerente em nada se confunde com a do travesti; tampouco se trata de hermafrodita, bissexual, homossexual e muito menos de transformista; antes, se cuida de transexual masculino.  Já faz tempo, HELENO CLÁUDIO FRAGOSO escreveu que o transexualismo não se confunde com o homossexualismo.  Os homossexuais, disse, “convivem com o próprio sexo e estão certos de pertencer a ele. Os costumes e vestuários próprios do sexo masculino não os agridem psicologicamente, embora alguns prefiram uma aparência bizarra e excêntrica, afetada e efeminada.  Outros, ao contrário, desejam uma aparência máscula, cultivando atributos masculinos (barba, bigode, costeletas) e vestuário adequado. Os transexuais, ao contrário, sentem-se como indivíduos ‘fora do grupo’ desde o início, não participando com espontaneidade e integração do ambiente por eles freqüentado.  Por seu turno, os travestis, de um modo geral, podem levar vidas duplas, apresentando-se ora como indivíduos do sexo masculino, ora transvestidos.  Há uma ‘tolerância’ em relação a ambos os comportamentos em que há predominância de um ou de outro por um período variável, às vezes de certa maneira cíclica ou temporária, ocasional.  Do travesti difere o transexual fundamentalmente no desejo compulsivo de reversão sexual, que os travestis não apresentam, e no comportamento mais feminino” .
O transexual, mais propriamente ensina o conhecido cirurgião ROBERTO FARINA, “tem genitália masculina e cérebro feminino.  Isso explica porque nem a influência do meio ambiente, nem a educação alteram a sua realidade. Ele não se torna transexual, ele já nasce transexual.  O transexual masculino é um indivíduo de alma feminina enclausurada num corpo masculino. A partir dos quatro anos, ele demonstra preferir roupas, brinquedos e companhia de meninas. Já na adolescência, repudia a própria genitália como excrescência repulsiva.  Os conflitos psicológicos daí decorrentes são incalculáveis, geradores de muita ansiedade e grande desespero.  O resultado final, quando não há tratamento cirúrgico, pode chegar até mesmo à ocorrência de automutilação (amputação peno-escrotal, no caso de transexual masculino, ou deformação constritiva das mamas, no caso de transexual feminino) ou suicídio.  É bom lembrar que o transexual não é homossexual, transvestido e nem hermafrodita”.  O transexual, continua – veja-se, neste ponto, a identificação do ensinamento com o caso dos autos -, tem “um perfil psicossomático próprio: o transexual masculino assume, em gerar, o papel feminino apesar do corpo de homem e apesar do alto preço que a sociedade lhe impõe (segregação, chacotas, situação não legalizada etc.); de maneira geral, é muito casto e cometido, e o transexual masculino é feminino e não efeminado, como acontece com os homossexuais; depois de operado, consegue se realizar com a perfeita adequação do sexo orgânico ao sexo genérico (cerebral)”.  Por isso, conclui, a “sociedade precisa abrir os olhos, inteirando-se do drama vivido pelo transexual, para não cair no terceiro gênero de cérebro denunciado por Maquiavel” .
Com outras palavras, a respeitada TEREZA RODRIGUES VIEIRA, com justiça freqüentemente lembrada em questões como a dos autos, aclara que transexualismo “é a convicção absoluta de uma pessoa, de sexo fisicamente determinado ao nascer, de pertencer psicologicamente ao outro sexo.  Este indivíduo não quer simplesmente mudar de sexo; tal adequação lhe é imposta de forma irreversível, portanto ele nada mais reclama que a colocação de sua aparência física em concordância com seu verdadeiro sexo, ou seja, o sexo psicológico” .
Certa vez, ALBERT EINSTEIN afirmou: “Época triste a nossa, em que é mais difícil quebrar um preconceito do que um átomo”.  Estava certo. Os átomos são facilmente “quebráveis”; já os preconceitos, muitos deles permanecem inquebrantáveis.  O Direito deve caminhar para superar essa situação, para vencer a intolerância, dando o exemplo de respeito pelos anseios e manifestações externadas pelos mais diversos segmentos sociais, pondo-se de parte questões religiosas, por mais respeitáveis que sejam.  E isso a pouco e pouco vem ocorrendo, como particularmente demonstram os julgados das Cortes de Justiça estaduais.  Como ressaltou o Ministro MARCO AURÉLIO MELLO, do Supremo Tribunal Federal, tratando do tema da interrupção de gravidez de feto anencéfalo, “há que se calçar o sapato não com o próprio pé, mas com o pé do outro, de modo a sentir exatamente onde lhe machuca o calo.  Para aguçar o termômetro da sensibilidade, é de bom alvitre perguntar a si mesmo, antes de qualquer decisão: e se fosse com a minha filha?” (A dor a mais, Folha de São Paulo, ed. de 20.10.2004, “Opinião”, p. 3).
Vossa Excelência não ignora que os rápidos avanços obtidos pela medicina permitem hoje a identificação de uma série de distúrbios de ordem genética. Exteriorizam-se durante o desenvolvimento embrionário e são capazes de originar indivíduos com genitália masculina ou feminina aparentemente normais, mas com as funções cerebrais do sexo oposto ao que aparentam. O resultado disso são pessoas que acabam desenvolvendo graves problemas psicológicos, ainda mais quando se considera o estigma que pesa sobre os indivíduos que sofrem dessas disfunções.
É verdade que não há disposição legal expressa autorizando (mas também, forçoso é reconhecer, não há proibição, de maneira que, a princípio, o ato poderia ser praticado, a teor do que dispõe o art. 5º, “caput”, inc. II, da Constituição Federal; cf. RT 745/106), por motivo de cirurgia, a alteração do sexo constante do registro de nascimento .  Mas não menos acertado será afirmar que o acolhimento dessa pretensão encontra fundamento em preceitos e princípios encontráveis na própria Constituição Federal e nas leis ordinárias.   Em primeiro lugar, deve-se apontar o festejado princípio da dignidade da pessoa humana, que se traduz no pilar de todo o ordenamento jurídico nacional, tornando todos os indivíduos merecedores da consideração do Estado, como sujeitos de direitos e titulares do respeito da comunidade em que vivem (art. 1º, “caput”, inc. I, da Constituição Federal). 
A própria Constituição Federal também destaca, dentre os direitos sociais, a saúde (art. 6º), prescrevendo ser “direito de todos e dever do Estado” (art. 196).  Neste ponto, é importante salientar que, segundo a Organização Mundial da Saúde, o conceito de saúde compreende não apenas o bem-estar físico, mas também o social e psíquico.  Consoante anotado, no transexual, essa situação de conflito acarreta-lhe um desajuste psíquico que reclama reparação.
Ainda a Constituição Federal arrola, como objetivos fundamentais da República, construir uma sociedade livre, justa e solidária (art. 3º, inc. I), bem assim prover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação (inc. IV).          
A tudo se acresce que, sobre se tratar, já se disse, de procedimento (inominado) de jurisdição voluntária, o juiz, como deflui do art. 1.109 do CPC, não é obrigado a observar, na sentença, critério de legalidade estrita, podendo adotar, em cada caso, a solução que reputar mais conveniente ou oportuna.  Cumpre-lhe aplicar o critério da eqüidade, não estando jungido à estrita observância do direito aplicável à espécie, ao enquadramento rígido, frio  e estático da lei. Impedir, no caso, “as retificações pretendidas importaria em condenar o requerente, para o resto de sua vida, a constantes constrangimentos e vexames, expô-lo perpetuamente ao ridículo…” (Jurisprudência Catarinense 76/756).” (Parecer do Ministério Público lançado nos autos do Proc. nº 04.003.124-9, da 2ª Vara de Família e Sucessões, datado de 05 de abril de 2006)
Nesse sentido, admitindo integralmente a pretensão do requerente é a orientação da jurisprudência do Egrégio Superior Tribunal de Justiça:
“… a cirurgia de transgenitalização já é uma realidade institucional, incluída, recentemente, na lista de procedimentos custeados pelo Sistema Único de Saúde. O Conselho Federal de Medicina reconhece o “transexualismo” como um transtorno de identidade sexual e a cirurgia de redesignação sexual como uma solução terapêutica. Tanto é assim, que o procedimento foi regulamentado pela Resolução desse Conselho sob n.º 1.482/97, que foi substituída, em 6 de novembro de 2002, pela Resolução n.º 1.652/2002, tendo como inovação significativa o fato de que as cirurgias para adequação do fenótipo masculino para feminino deixam de ser experimentais, considerados os avanços da medicina e o grande número de cirurgias realizadas com êxito no mundo todo.
Os preceitos contidos na referida resolução se coadunam com o art. 13 do CC/02, segundo o qual a disposição de parte do próprio corpo apenas seria possível nos casos de exigência médica.
Ocorre que não há norma específica no ordenamento jurídico brasileiro regulando a alteração do assento de nascimento em casos de transexualidade, em que pese a existência, no Congresso Nacional, do Projeto de Lei n.º 70, do ano de 1995, o qual propõe acréscimo de dois parágrafos ao art. 58 da Lei dos Registros Públicos e possibilita, assim, a mudança do prenome e do sexo do transexual em seu assento de nascimento.
Essa constatação, todavia, não tem o condão de fazer com que o fato social da transexualidade fique sem solução jurídica, sendo aplicável à espécie o disposto nos arts. 4º da LICC e 126 do CPC. Cumpre à construção pretoriana, in casu, suprir a lacuna legislativa.
[...]
Desta feita, em consonância com o art. 13 do CC/02 e, mais do que isso, com a solução aplicada em casos semelhantes pelos acórdãos paradigmas, conclui-se que se o Estado consente com a possibilidade de realizar-se cirurgia de transgenitalização, logo deve também prover os meios necessários para que o indivíduo tenha uma vida digna e, por conseguinte, seja identificado jurídica e civilmente tal como se apresenta perante a sociedade.
E a tendência mundial é a de alterar-se o registro adequando-se o sexo jurídico ao sexo aparente, ou seja, à identidade sexual, formada também por componentes psicossociais. Analisada a questão com base no direito comparado, constata-se, por exemplo, a existência de lei alemã regulando o registro dos transexuais desde 10 de setembro de 1980 (Lei dos Transexuais – Transsexuellengesetz – TSG). Essa norma permite tanto a alteração do prenome do transexual (kleine Lösung – “pequena solução”), quanto a modificação do gênero sexual em seu assento de nascimento, desde que tenha sido submetido à cirurgia de redesignação sexual (groâe Lösung – “grande solução”).
A regulamentação da situação registrária dos transexuais alemães ocorreu após uma decisão do Tribunal Constitucional Alemão (Bundesverfassungsgericht ), de 11 de outubro de 1978, que reformou acórdão proferido pelo Tribunal Federal alemão (Bundesgerichtshof – BGH), o qual considerava o processo de metamorfose sexual imoral e contrário aos bons costumes. Considerando a lacuna legislativa então existente, o Tribunal constitucional alemão asseverou que “a sexualidade de uma pessoa não deve ser determinada somente pelas propriedades de seus órgãos sexuais, mas também por suas características psicológicas. O ordenamento jurídico não pode deixar de considerar esse aspecto, porque ele influi na capacidade pessoal de integração da pessoa às funções sociais de seu gênero sexual da mesma maneira que suas características físicas, quando não de maneira maior.” (Bundesverfassungsgericht , j. em 11 de outubro de 1978 – 1 BvR 16/72, in BverfGE 49, 286, <291>).
O Prof. Antonio Chaves, em artigo sobre o assunto, compilou ainda alguns acórdãos proferidos por Tribunais italianos que admitem a possibilidade de o transexual obter a retificação de seu registro civil (Antonio Chaves, Castração. Esterilização. Mudança artificial de sexo, Revista Forense, vol. 276, p. 13).
A lei portuguesa tampouco faz qualquer referência explícita à situação dos transexuais. A solução consolidada na jurisprudência portuguesa, em face de tal situação, é a de admitir a alteração do registro, desde que verificadas as circunstâncias que a permitam, uma vez que o registro deve manter-se em conformidade com a nova realidade relativa ao sexo adquirido por quem efetuou a cirurgia de transgenitalização. Nesse sentido, cabe transcrever ementa de acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Lisboa, ao considerar a existência de lacuna legislativa e a necessidade de pronunciamento acerca da possibilidade jurídica da mudança de sexo:
“I – O transexual, ou seja, o indivíduo cujo perfil psicológico profundo é contrário ao seu cariotipo, tem tendência insensível de fazer coincidir sua aparência sexual com o seu verdadeiro sentir, ‘corrigindo, assim, a natureza’.
II – Deste modo, um pseudo-hermafrodita masculino, que mediante operações tomou a aparência física de mulher, tem direito, visto a lei portuguesa o não proibir, ainda que o não preveja, de ver rectificado o seu registro civil, de forma a que dele passe a constar ser indivíduo do sexo feminino e não masculino.” (Tribunal da Relação de Lisboa, Apelação n.º 16009, j. em 17/1/1984, Rel. Des. Ribeiro de Oliveira).
O Tribunal Europeu de Direitos do Homem, por sua vez, pronunciou-se com decisão condenatória contra a França, pelo fato de a Corte de Cassação francesa não ter acatado pedido de redesignação no assento civil de transexual operado. A condenação provocou uma reformulação no entendimento do Judiciário francês, que tem proferido decisões favoráveis à pretensão de alteração do designativo do sexo de transexuais operados, com base no respeito ao princípio da vida privada e familiar das pessoas, disposto no art. 8º da Convenção Européia dos Direitos do Homem.
Sob a perspectiva dos princípios da Bioética – de beneficência, autonomia e justiça –, a dignidade da pessoa humana deve ser resguardada, em um âmbito de tolerância, para que a mitigação do sofrimento humano possa ser o sustentáculo de decisões judiciais, no sentido de salvaguardar o bem supremo e foco principal do Direito: o ser humano em sua integridade física, psicológica, socioambiental e ético-espiritual.
O transexual, segundo literatura médica, experimenta a insustentável condição de nascer com cromossomos, genitais e hormônios de um sexo, mas com a convicção íntima de pertencer ao gênero oposto. Repudia o que a natureza lhe legou, vivendo um estranhamento em relação ao próprio corpo, o que desencadeia grande frustração e desconforto, rejeição do fenótipo, bem como tentativas de automutilação e até mesmo de autoextermínio.
Explicam, os psiquiatras, que os transexuais não são pessoas de um sexo que desejam se tornar do outro sexo; psicologicamente eles já são do sexo oposto ao biológico, o que gera o transtorno de identidade sexual, incluído na 10ª versão da Classificação Internacional de Doenças, da Organização Mundial da Saúde, catálogo conhecido como CID-10.
[...]
Em última análise, afirmar a dignidade humana significa para cada um manifestar sua verdadeira identidade, o que inclui o reconhecimento da real identidade sexual, em respeito à pessoa humana como valor absoluto.
Somos todos filhos agraciados da liberdade do ser, tendo em perspectiva a transformação estrutural por que passa a família, que hoje apresenta molde eudemonista, cujo alvo é a promoção de cada um de seus componentes, em especial da prole, com o insigne propósito instrumental de torná-los aptos de realizar os atributos de sua personalidade e afirmar a sua dignidade como pessoa humana.
A situação fática experimentada pelo recorrente tem origem em idêntica problemática pela qual passam os transexuais em sua maioria: um ser humano aprisionado à anatomia de homem, com o sexo psicossocial feminino, que, após ser submetido à cirurgia de redesignação sexual, com a adequação dos genitais à imagem que tem de si e perante a sociedade, encontra obstáculos na vida civil, porque sua aparência morfológica não condiz com o registro de nascimento, quanto ao nome e designativo de sexo.
[...]
A ambiguidade sexual decorrente do fenômeno da transexualidade, por sua vez, é de índole meramente biológica, porque no sentido psicossocial, o transexual tem a convicção de pertencer ao sexo oposto, com sentimentos, percepções, índole e conduta condizentes com o sexo oposto, em contraposição à genitália, que lhe expõe ao opróbio, aviltando-lhe o espírito.
Conservar o “sexo masculino” no assento de nascimento do recorrente, em favor da realidade biológica e em detrimento das realidades psicológica e social, bem como morfológica, pois a aparência do transexual redesignado, em tudo se assemelha ao sexo feminino, equivaleria a manter o recorrente em estado de anomalia, deixando de reconhecer seu direito de viver dignamente.
Assim, tendo o recorrente se submetido à cirurgia de redesignação sexual, nos termos do acórdão recorrido, existindo, portanto, motivo apto a ensejar a alteração para a mudança de sexo no registro civil, e a fim de que os assentos sejam capazes de cumprir sua verdadeira função, qual seja, a de dar publicidade aos fatos relevantes da vida social do indivíduo, forçosa se mostra a admissibilidade da pretensão do recorrente, devendo ser alterado seu assento de nascimento a fim de que nele conste o sexo feminino, pelo qual é socialmente reconhecido.
[...]
Deve, pois, ser facilitada a alteração do estado sexual, de quem já enfrentou tantas dificuldades ao longo da vida, vencendo-se a barreira do preconceito e da intolerância. O Direito não pode fechar os olhos para a realidade social estabelecida, notadamente no que concerne à identidade sexual, cuja realização afeta o mais íntimo aspecto da vida privada da pessoa. E a alteração do designativo de sexo, no registro civil, bem como do prenome do operado, é tão importante quanto a adequação cirúrgica, porquanto é desta um desdobramento, uma decorrência lógica que o Direito deve assegurar.
Sobretudo, assegurar ao transexual o exercício pleno de sua verdadeira identidade sexual consolida, sobretudo, o princípio constitucional da dignidade da pessoa humana, cuja tutela consiste em promover o desenvolvimento do ser humano sob todos os aspectos, garantindo que ele não seja desrespeitado tampouco violentado em sua integridade psicofísica. Poderá, dessa forma, o redesignado exercer, em amplitude, seus direitos civis, sem restrições de cunho discriminatório ou de intolerância, alçando sua autonomia privada em patamar de igualdade com os demais integrantes da vida civil. A liberdade se refletirá na seara doméstica, profissional e social do recorrente, que terá, após longos anos de sofrimentos, constrangimentos, frustrações e dissabores, enfim, uma vida plena e digna.
De posicionamentos herméticos, no sentido de não se tolerar “imperfeições” como a esterilidade ou uma genitália que não se conforma exatamente com os referenciais científicos, e, consequentemente, negar a pretensão do transexual de ter alterado o designativo de sexo e nome, subjaz o perigo de estímulo a uma nova prática de eugenia social, objeto de combate da Bioética, que deve ser igualmente combatida pelo Direito, não se olvidando os horrores provocados pelo holocausto no século passado.”(RECURSO ESPECIAL Nº 1.008.398 – SP, Rel. Ministra Nancy Andrighi, dj. 15.10.2099)
Em outro caso julgado pelo Egrégio Superior Tribunal de Justiça foi expressamente examinada a questão da averbação do registro e determinado que a averbação não se faça pública: “Vale ressaltar que os documentos públicos devem ser fiéis aos fatos da vida, além do que deve haver segurança nos registros públicos. Dessa forma, no livro cartorário, à margem do registro das retificações de prenome e de sexo do requerente, deve ficar averbado que as modificações procedidas decorreram de sentença judicial em ação de retificação de registro civil. Tal providência decorre da necessidade de salvaguardar os atos jurídicos já praticados, objetiva manter a segurança das relações jurídicas e, por fim, visa solucionar eventuais questões que sobrevierem no âmbito do direito de família (casamento), no direito previdenciário e até mesmo no âmbito esportivo. [...] Todavia, tal averbação deve constar apenas do livro de registros, não devendo constar nas certidões do registro público competente nenhuma referência de que  aludida alteração é oriunda de decisão judicial, tampouco que ocorreu por motivo de cirurgia de mudança de sexo, sob pena de manter a exposição do indivíduo a situações constrangedoras e discriminatórias.” (RECURSO ESPECIAL nº 737.993 – MG, Rel. Ministro João Otávio de Noronha, dj. 10.11.2009)
O direito não pode ficar alheio à realidade do fato social e deve encontrar solução adequada para dar ao homem vida digna. Essa solução está ao alcance da jurisdição. Basta retificar o registro e manter a publicidade das informações retificadas sujeitas exclusivamente ao conhecimento do próprio requerente e à requisição judicial (certidão de inteiro teor), para salvaguarda de direitos, preservando-se assim a dignidade do requerente que tem direito a obter pleno efeito da retificação determinada. Não há, sempre respeitado o entendimento em sentido contrário, solução intermediária, porque, ou se reconhece que o requerente se identifica pelo gênero masculino e se empresta à retificação todos os efeitos que ela deve ter, ou se nega o pedido. O contrário impõe ao requerente séria restrição à existência digna, subtraindo-lhe direitos que são assegurados ao homem e à mulher igualmente, como se fosse pessoa de terceiro gênero, desconhecido do nosso ordenamento.
Nesse sentido é o parecer bem fundamentado da Doutora Carmen Beatriz A. Ungaretti Selingardi Guardia, Procuradora de Justiça do Ministério Público, que sustenta que deve ser “vedada qualquer menção nas certidões registrárias, sob pena de restar mantida situação constrangedora e discriminatória”.
3. – Pelo exposto, acompanho o voto do Douto Relator para DAR PROVIMENTO ao recurso e deferir a retificação do sexo do requerente no assento de nascimento, que deve agora registrar “sexo masculino”, mantendo a publicidade das informações retificadas sujeitas exclusivamente ao conhecimento do próprio requerente e à requisição judicial (certidão de inteiro teor), para salvaguarda de direitos, vedada a referência à retificação nas certidões do registro.  
(a) CARLOS ALBERTO GARBI 
Está em trâmite no Senado Federal importante Projeto de Lei n. 658/11, de autoria da Senadora Marta Suplicy, que prevê a possibilidade de retificação do registro independentemente da cirurgia de redesignação. O Relatório na Comissão de Direitos Humanos e Legislação Participativa, de 16 de junho de 2012, é do Senador Eduardo Matarazzo Suplicy.  Sobre o referido Projeto vale assistir à entrevista do Doutor Amaro Senna publicada pelo Supremo Tribunal Federal. Siga o link.