Desacato não é crime, diz Juiz em controle de convencionalidade
O Juiz Alexandre Morais da Rosa, no julgamento dos autos n. 0067370-64.2012.8.24.0023, da
comarca da Capital de Santa Catarina – Florianópolis -, efetuando
controle de convencionalidade, reconheceu a inexistência do crime de
desacato em ambiente democrático. Invocando a Declaração de Princípios
sobre a Liberdade de Expressão, afastou a incidência do disposto no art.
331 do CP. A íntegra da decisão segue abaixo. Confira
Autos n. 0067370-64.2012.8.24.0023
Ação: Ação Penal – Procedimento Sumário/PROC
Autor: Ministério Público do Estado de Santa Catarina
Acusado: A. S. dos S. F.
Vistos para sentença.
I – Relatório.
O representante do Ministério Público em exercício nesta Unidade ofereceu denúncia contra A. S. dos S. F.,
já qualificado nos autos, dando-o como incurso nas sanções do art. 329 e
331, tendo em vista os atos delituosos assim narrados na peça
acusatória (fls. 02-03):
No dia 15 de janeiro de 2012, por volta
das 04h48min, na Avenida das Nações, em frente à Base de Canasveiras,
nesta Capital, policiais militares encontravam-se em policiamento
ostensivo quando avistaram uma briga generalizada, envolvendo diversas
pessoas, e que, diante da intervenção policial, a contenda foi
apaziguada, acalmando-se os ânimos de todos, com exceção do denunciado
A. S., que mostrava-se ainda agressivo e gritando muito. Ao ser-lhe
solicitado que se acalmasse, o denunciado, em tom de deboche, afirmou
“que não gostava de polícia e que eram todos lotes de bichos, arrogantes
e que não serviam para nada”, negando-se a prestar qualquer
esclarecimento sobre a briga, “muito menos para uma policial feminina,
porque mulher era para estar em casa dormindo”. Ao ser informado de que
estava preso em razão do desacato proferido, o denunciado tentou fugir,
mas mesmo detido em seguida, resistiu fortemente à prisão, com socos e
empurrões, sendo necessária a atuação de quatro policiais para contê-lo.
Mesmo após detido e algemado, o denunciado apresentou resistência e
continuou a ofender os policiais militares, tudo na presença de diversas
pessoas que acudiram ao acontecimento.
Certificados os antecedentes criminais do acusado (fls. 10-11).
A denúncia foi recebida em 29 de abril de 2013.
Citado (fl. 43), o acusado, por meio de defensor público, apresentou resposta à acusação (fl. 50-51).
Recebida a resposta à acusação e, não
sendo o caso de absolvição sumária, foi designada audiência de instrução
e julgamento para o dia 10/09/2013, às 15h30min (fls. 53).
Realizada a instrução, foram ouvidas
testemunhas e foi realizado o interrogatório do acusado, sendo os
depoimentos gravados em meio audiovisual (fls. 74 e 86).
O Ministério Público, em alegações
finais, requereu a condenação do acusado nas sanções dos art. 331 e
absolvição da imputação do crime de resistência previsto no art. 329 do
Código Penal (fls. 95-101 ). A defesa, por sua vez, postulou pela
absolvição do acusado, aduzindo ausência de dolo (fls. 103-113).
Os autos vieram conclusos.
É o breve relatório.
II – Fundamentação
Trata-se de ação penal de iniciativa pública incondicionada promovida pelo Ministério Público em desfavor de A. S. dos S. F., na qual lhe é imputada a prática do crime de desacato, assim descrito no art. 331 do Código Penal: “desacatar funcionário público no exercício da função ou em razão dela”;
trata-se, conforme assinala a doutrina, de crime formal, comum,
unissubjetivo, unissubsistente e de menor potencial ofensivo, tendo como
fundamento teleológico a proteção da dignidade da Administração Pública
e do exercício do Serviço Público.
Isso posto, importa destacar, de início,
que o controle de compatibilidade das leis não se trata de mera
faculdade conferida ao julgador singular, mas sim de uma incumbência,
considerado o princípio da supremacia da Constituição
(http://www.conjur.com.br/2015-jan-02/limite-penal-temas-voce-saber-processo-penal-2015).
Cabe ainda frisar que, no exercício de tal controle, deve o julgador
tomar como parâmetro superior do juízo de compatibilidade vertical não
só a Constituição da República (no que diz respeito, propriamente, ao
controle de constitucionalidade difuso), mas também os diversos diplomas
internacionais, notadamente no campo dos Direitos Humanos, subscritos
pelo Brasil, os quais, por força do que dispõe o art. 5º, §§ 2º e 3º[1],
da Constituição da República, moldam o conceito de “bloco de
constitucionalidade” (parâmetro superior para o denominado controle de convencionalidade das disposições infraconstitucionais).
Nesse sentido, como bem anota Flavia Piovesan[2]:
O Direito Internacional dos Direitos
Humanos pode reforçar a imperatividade de direitos constitucionalmente
garantidos – quando os instrumentos internacionais complementam
dispositivos nacionais ou quando estes reproduzem preceitos enunciados
na ordem internacional – ou ainda estender o elenco dos direitos
constitucionalmente garantidos – quando os instrumentos internacionais
adicionam direitos não previstos pela ordem jurídica interna.
No que concerne especificamente ao
chamado controle de convencionalidade das leis, inarredável a menção ao
julgamento do Recurso Extraordinário 466.343, da relatoria do Ministro
Gilmar Mendes, no qual ficou estabelecido o atual entendimento do
Supremo Tribunal Federal no que diz respeito à hierarquia das normas
jurídicas no direito brasileiro. Assentou o STF que os tratados
internacionais que versem sobre matéria relacionada a Direitos Humanos
têm natureza infraconstitucional e supralegal – à exceção dos tratados
aprovados em dois turnos de votação por três quintos dos membros de cada
uma das casas do Congresso Nacional, os quais, a teor do art. 5º, §3º,
CR, os quais possuem natureza constitucional.
Trata-se de entendimento pacífico do Pretório Excelso, como se pode inferir do seguinte julgado:
PRISÃO CIVIL DO DEPOSITÁRIO
INFIEL EM FACE DOS TRATADOS INTERNACIONAIS DE DIREITOS HUMANOS.
INTERPRETAÇÃO DA PARTE FINAL DO INCISO LXVII DO ART. 5o DA CONSTITUIÇÃO
BRASILEIRA DE 1988. POSIÇÃO HIERÁRQUICO-NORMATIVA DOS TRATADOS INTERNACIONAIS DE DIREITOS HUMANOS NO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO.
Desde a adesão do Brasil, sem qualquer reserva, ao Pacto Internacional
dos Direitos Civis e Políticos (art. 11) e à Convenção Americana sobre
Direitos Humanos – Pacto de San José da Costa Rica (art. 7º, 7), ambos
no ano de 1992, não há mais base legal para prisão civil do depositário
infiel, pois o caráter especial desses diplomas internacionais sobre
direitos humanos lhes reserva lugar específico no ordenamento jurídico,
estando abaixo da Constituição, porém acima da legislação interna. O
status normativo supralegal dos tratados internacionais de direitos
humanos subscritos pelo Brasil torna inaplicável a legislação
infraconstitucional com ele conflitante, seja ela anterior ou posterior
ao ato de adesão. Assim ocorreu com o art. 1.287 do Código Civil de 1916
e com o Decreto-Lei n° 911/69, assim como em relação ao art. 652 do
Novo Código Civil (Lei n° 10.406/2002). […] (RE 349703. Relator: Min. Carlos Ayres Britto) – grifo nosso.
Por conseguinte, cumpre ao julgador
afastar a aplicação de normas jurídicas de caráter legal que contrariem
tratados internacionais versando sobre Direitos Humanos, destacando-se,
em especial, a Convenção Americana de Direitos Humanos de 1969 (Pacto de
São José da Costa Rica), o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e
Políticos de 1966 e o Pacto Internacional dos Direitos Econômicos,
Sociais e Culturais de 1966 (PIDESC), bem como as orientações expedidas
pelos denominados “treaty bodies” – Comissão Internamericana de
Direitos Humanos e Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas,
dentre outros – e a jurisprudência das instâncias judiciárias
internacionais de âmbito americano e global – Corte Interamericana de
Direitos Humanos e Tribunal Internacional de Justiça da Organização das
Nações Unidas, respectivamente.
Nesse sentido, destaque-se que no âmbito da Comissão Interamericana de Direitos Humanos[3]
foi aprovada, no ano 2000, a Declaração de Princípios sobre a Liberdade
de Expressão, tendo tal documento como uma de suas finalidades a de
contribuir para a definição da abrangência do garantia da liberdade de
expressão assegurada no art. 13 da Convenção Americana de Direitos
Humanos. E, dentre os princípios consagrados na declaração,
estabeleceu-se, em seu item “11”, que “as leis que punem a expressão
ofensiva contra funcionários públicos, geralmente conhecidas como ‘leis de desacato‘, atentam contra a liberdade de expressão e o direito à informação.”
Considerada, portanto, a prevalência do
art. 13 da Convenção Americana de Direitos Humanos sobre os dispositivos
do Código Penal, é inarredável a conclusão de Galvão[4] de que “a
condenação de alguém pelo Poder Judiciário brasileiro pelo crime de
desacato viola o artigo 13 da Convenção Americana sobre os Direitos
Humanos, consoante a interpretação que lhe deu a Comissão Interamericana
de Direitos Humanos”.
Em que pese reconhecer-se a inexistência, a priori,
de caráter vinculante na interpretação do tratado operada pela referida
instituição internacional, filio-me ao entendimento apresentado,
considerando, antes de tudo, os princípios da fragmentariedade e da
interferência mínima, os quais impõem que as condutas de que deve dar
conta o Direito Penal são essencialmente aquelas que violam bens
jurídicos fundamentais, que não possam ser adequadamente protegidos por
outro ramo do Direito. Nesse prisma, tenho que a manifestação pública de
desapreço proferida por particular, perante agente no exercício da
atividade Administrativa, por mais infundada ou indecorosa que seja,
certamente não se consubstancia em ato cuja lesividade seja da alçada
da tutela penal. Trata-se de previsão jurídica nitidamente autoritária –
principalmente em se considerando que, em um primeiro momento, caberá à
própria autoridade ofendida (ou pretensamente ofendida) definir o
limiar entre a crítica responsável e respeitosa ao exercício atividade
administrativa e a crítica que ofende à dignidade da função pública, a
qual deve ser criminalizada. A experiência bem demonstra que, na dúvida
quanto ao teor da manifestação (ou mesmo na certeza quanto à sua
lidimidade), a tendência é de que se conclua que o particular esteja
desrespeitando o agente público – e ninguém olvida que esta situação,
reiterada no cotidiano social, representa infração à garantia
constitucional da liberdade de expressão.
É certo que, paulatinamente, o
entendimento emanado pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos
deverá repercutir na jurisprudência interna dos Estados americanos
signatários do Pacto de São José da Costa Rica – sobretudo em Estados
que, como o Brasil, são também signatários da Convenção de Viena sobre
Direito dos Tratados de 1969, cujo art. 27 prescreve que “uma Parte não
pode invocar as disposições do seu direito interno para justificar o
descumprimento de um tratado.” A título de exemplo, destaco que,
precisamente pelos fundamentos alinhavados pela Comissão, a Suprema
Corte de Justiça do Estado de Honduras, em 19 de maio de 2005, e a Corte
de Constitucionalidade da República de Guatemala, em 1º de Fevereiro de
2006, julgaram inconstitucionais os tipos penais dos respectivos
ordenamentos jurídicos correlatos ao crime de desacato previsto na
legislação brasileira.
A respeito, convém destacar as razões invocadas pela Corte de Constitucionalidade da República de Guatemala[5]:
El texto de los artículos 411 y 412 impugnados es el siguiente:
“Artículo 411. (Desacato a los
Presidentes de los Organismos de Estado) Quien ofendiere en su dignidad o
decoro, o amenazare, injuriare o calumniare a cualquiera de los
Presidentes de los Organismos de Estado, será sancionado con prisión de
uno a tres años.
Artículo 412. (Desacato a la autoridad)
Quien amenazare, injuriare, calumniare o de cualquier otro modo
ofendiere en su dignidad o decoro, a una autoridad o funcionario en el
ejercicio de sus funciones o con ocasión de ellas, será sancionado con
prisión de seis meses a dos años.”
En ambas regulaciones se pueden advertir
algunos puntos coincidentes, como lo son: a) sujeto activo o titular:
funcionarios públicos, cuya denominación también abarca a los
Presidentes de los Organismos de Estado; b) sujeto pasivo: un
particular, que ostente capacidad de goce y ejercicio; y c) elemento
material: ofensa a la dignidad y decoro, cuya determinación comporta
aspectos plenamente subjetivos, sobre todo si el señalamiento o
imputación se originan por la crítica política que siempre va a implicar
juicios de valor heterogéneos; amenaza, que si se trata de intimación
con la realización de un mal directamente a la persona, ya está
sancionada como ilícito penal en el artículo 215 del Código Penal; e
injuria o calumnia, que si se determina que éstas fueron dirigidas con
evidente ánimo dañoso del honor de una persona, también se encuentran
sancionadas penalmente en los artículos 159 y 161 del citado Código; y
que si son punibles de la manera en la que están regulados en los
artículos 411 y 412 antes citados, pueden ser utilizados como un método
para reprimir la crítica y los juicios de valores y opiniones de
personas que pudiera considerarse como adversarios políticos.
En consecuencia, no existe un bien
jurídico que merezca la tutela que se pretende al instituir los tipos
penales contenidos en los artículos 411 y 412 antes citados, generando
una protección adicional respecto de críticas, imputaciones o
señalamientos de la que no disponen los particulares y un efecto
disuasivo en quienes deseen participar en el debate público, por temor a
ser objeto de sanciones penales aplicadas conforme una ley que carece
de la debida certeza entre los hechos y los juicios de valor. Es
pertinente acotar que desde mil novecientos sesenta y cuatro la Corte
Suprema de Justicia de los Estados Unidos, en su sentencia en el caso
New York Times vs Sullivan (376 U.S. 254, 1964) estableció que el Estado
debe garantizar la libertad de expresión, incluso en sus leyes penales,
por “un compromiso nacional profundo con el principio de que el debate
sobre los asuntos de interés público debe ser desinhibido, robusto, y
absolutamente abierto, por lo que perfectamente puede incluir fuertes
ataques vehementes, casuísticos y a veces desagradables contra el
gobierno y los funcionarios públicos”. Dicha Corte sostuvo, en ese
fallo, que las leyes que penalicen la difamación no se pueden referir a
una crítica general al gobierno o de sus políticas, pues los ciudadanos
son libres de divulgar información cierta sobre sus funcionarios, lo
cual también es compartido por este Tribunal.
Tampoco es ajeno a esta Corte el que
desde mil novecientos noventa y cinco, la Comisión Interamericana de
Derechos Humanos haya considerado que las leyes que establecen el delito
de Desacato son incompatibles con el artículo 13 de la Convención
Americana de Derechos Humanos, al haberse determinado que no son acordes
con el criterio de necesidad y que los fines que persiguen no son
legítimos, por considerarse que este tipo de normas se prestan para
abuso como un medio para silenciar ideas y opiniones impopulares y
reprimen el debate necesario para el efectivo funcionamiento de las
instituciones democráticas. (Vid. Informe sobre la Incompatibilidad
entre las leyes de desacato y la Convención Americana sobre Derechos
Humanos, OEA/Ser.L/V/II.88, Doc. 9 Rev. [1995] 17 de febrero de 1995).
Al atender las citas doctrinarias y
jurisprudenciales antes citadas, y aplicar lo extraído de ellas en
función de lo regulado en los artículos 411 y 412 del Código Penal, este
tribunal concluye indefectiblemente que tal regulación no guarda
conformidad con el contenido del artículo 35 constitucional; y de ahí
que por tratarse aquéllos de normas preconstitucionales, se determina
que estos contienen vicio de inconstitucionalidad sobrevenida, por lo
cual deben ser excluidos del ordenamiento jurídico guatemalteco y así
debe declararse al emitirse el pronunciamiento respectivo.
Por fim, cabe mencionar que a comissão
de juristas brasileiros responsável pela elaboração do anteprojeto do
Novo Código Penal deliberou, por maioria de votos, em sessão havida em
07 de maio de 2012, por sugerir a revogação do crime de desacato da
legislação penal brasileira, ante a sua incompatibilidade com a
Convenção Americana de Direitos Humanos[6].
Em relação ao suposto crime de
resistência, previsto no artigo 329 do Código Penal, considerando que a
Constituição da República ao organizar a estrutura do Poder Judiciário e
acometer ao Ministério Público o lugar de acusador no processo penal,
com a defesa no oposto, com a finalidade de garantir o contraditório,
deixou o juiz no lugar de espectador, ou seja, descabe qualquer
pretensão probatória na gestão da prova[7].
E a realização do Processo Penal acusatório é acolhida como tarefa
democrática inafastável, não se confundindo com as meras formas
processuais, mas sim como procedimento em contraditório (Cordero e Fazzalari), produzindo significativas alterações no modelo utilizado no Brasil[8]
Neste pensar, o papel desempenhado pelo juiz e pelas partes deve ser
acompanhado de “garantias orgânicas” e “procedimentais”, consistindo na
diferenciação marcante entre os modelos, consoante acentua Ferrajoli[9]: “pode-se
chamar acusatório todo sistema processual que tem o juiz como um
sujeito passivo rigidamente separado das partes e o julgamento como um
debate paritário, iniciado pela acusação, à qual compete o ônus da
prova, desenvolvida com a defesa mediante um contraditório público e
oral e solucionado pelo juiz, com base em sua livre convicção.
Inversamente, chamarei inquisitório todo sistema processual em
que o juiz procede de ofício à procura, à colheita e à avaliação das
provas, produzindo um julgamento após uma instrução escrita e secreta,
na qual são excluídos ou limitados o contraditório e os direitos da
defesa”. A separação das funções do juiz em relação às partes se
mostra como exigida pelo ‘princípio da acusação’, não podendo se
confundir as figuras, sob pena de violação da garantia da igualdade de partes e armas.
Deve haver paridade entre defesa e acusação, violentada flagrantemente
pela aceitação dessa confusão entre acusação e órgão jurisdicional.
Entendida nesse sentido, a garantia da separação representa, de um lado,
uma condição essencial do distanciamento do juiz em relação às partes
em causa, que é a primeira das garantias orgânicas que definem a figura
do juiz, e, de outro, um pressuposto do ônus da contestação e da prova
atribuídos à acusação, que são as primeiras garantias procedimentais da
jurisdição, conforme Ferrajoli. Acrescente-se que a
acusação precisa ser “obrigatória” no sentido de evitar ponderações
discricionárias – condições subjetivas de proceder – do órgão acusador,
tutelando o ‘princípio da igualdade de tratamento’ estatal e, ainda, que
esse órgão deve ser público e dotado das mesmas garantias orgânicas do
julgador. A assunção do modelo eminentemente acusatório, segundo Binder[10],
não depende do texto constitucional – que o acolhe, em tese, no caso
brasileiro, apesar de a prática o negar –, mas sim de uma “auténtica motivación” e um “compromiso interno y personal”
em (re)construir a estrutura processual sobre alicerces democráticos,
nos quais o juiz rejeita a iniciativa probatória e promove o processo
entre partes (acusação e defesa). Com isto bem posto, descabe qualquer
possibilidade de o juiz condenar quando o representante do Ministério
Público requer a absolvição. Assim proceder seria uma fraude ao sistema
acusatório.
No caso presente, o representante do Ministério Público assim se manifestou (fls. 95-101):
De acordo com o conjunto probatório
formado durante a instrução processual, não restou evidenciada prova
suficiente para a condenação do acusado pelo crime descrito no artigo
329 do Código Penal.
Isso porque, apesar do termo
circunstanciado de fls. 05/09 narrar que o réu resistiu à prisão com
socos e empurrões, sendo necessário quatro policiais para contê-lo, F.
L. dos S. não menciona nada sobre o ocorrido durante o seu depoimento
judicial (CD de fl. 86).
Assim é que, sendo o Ministério Público o
dono da ação penal e requerendo a absolvição, descabe qualquer
consideração, já que o juiz não pode condenar nesta hipótese, devendo o
acusado ser absolvido dessa imputação.
III – Dispositivo.
Por tais razões, JULGO IMPROCEDENTE A DENÚNCIA para ABSOLVER o acusado A. S. dos S. F.,
já qualificado nos autos, da imputação dos crimes descritos nos artigos
331 e 329, com base no art. 386, inciso III e VII, do Código de
Processo Penal.
Publique-se. Registre-se. Intime-se.
Transitada em julgado, arquivem-se.
Florianópolis (SC), 17 de março de 2015.
Alexandre Morais da Rosa
Juiz de Direito
[1]
Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer
natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no
País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à
segurança e à propriedade, nos termos seguintes: […] § 2º – Os direitos e
garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes
do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados
internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte. § 3º
Os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos que forem
aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três
quintos dos votos dos respectivos membros, serão equivalentes às
emendas constitucionais.
[2] PIOVESAN, Flavia. Direitos Humanos e o Direito Constitucional Internacional. 14ª Ed. São Paulo: Saraiva, 2013.p. 170.
[3]
A respeito das funções desempenhadas pela Comissão Interamericana de
Direitos Humanos no mecanismo interamericano de apuração de violação dos
direitos humanos, destaca Ramos: A comissão é o órgão
ao qual incumbe a promoção e a averiguação do respeito e a garantia dos
direitos fundamentais. Pode elaborar estudos e ofertar capacitação
técnica aos Estados. Pode também criar relatorias […],
dirigidas pelos Comissários, cujos relatórios serão submetidos à
Assembleia Geral da OEA. Além disso, pode efetuar visitas de campo, a
convite do Estado interessado. Cite-se como exemplo, a visita da
Comissão ao Brasil de 1995. Com efeito, a Comissão realizou, pela
primeira vez em sua história, missão geral de observação in loco
da situação de respeito aos direitos humanos no território brasileiro
em 1995. Durante a permanência da missão no Brasil (de 27 de novembro a 9
de dezembro), os integrantes da Comissão reuniram-se com membros do
goberno, da sociedade civil organizada, ouvindo depoimentos e coletando
dados. A partir desse trabalho de campo, a Comissão elabora um relatório
(dito geográfico, por abranger a análise da situação geral dos direitos
humanos em um território, no caso, o brasileiro), emitindo suas
recomendações para a promoção dos direitos humanos. […] O objetivo desse
sistema é a elaboração de recomendação ao Estado para a observância e
garantia de direitos humanos protegidos pela Carta da OEA e pela
Declaração Americana de Direitos e Deveres do Homem (RAMOS, André de
Carvalho. Processo Internacional de Direitos Humanos. 3ª Ed. São Paulo: Saraiva, 2013. pp. 210-211)
[4] GALVÃO, Bruno Haddad. O crime de desacato e os direitos humanos. Publicado no site <www.conjur.com.br>, acessado em 14/01/2015.
[5] Julgado extraído do site da Corte de Constitucionalidade da República de Guatemala. Link: <http://www.sistemas.cc.gob.gt/Sjc/frmSjc.Aspx>, expediente nº 1122-2005, acesso em 27/01/2015
[6] Informação extraída da reportagem “Desacato: muito além da falta de educação”, publicada no site do Superior Tribunal de Justiça. Link:
<http://stj.jus.br/portal_stj/publicacao/engine.wsp?tmp.area=398&tmp.texto=106170>, acessado em 23/01/2015
[7] MIRANDA COUTINHO, Jacinto Nelson de. Crítica à teoria geral do Direito Processual Penal. Rio de Janeiro: Renovar, 2001.
[8] MORAIS DA ROSA, Alexandre. Decisão Penal: a bricolage de significantes. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005.
[9] Direito e Razão. São Paulo: RT, 2001, p. 452.
[10] BINDER, Alberto M. Iniciación al Proceso Penal Acusatorio. Campomanes: Buenos Aires, 2000, p. 07.
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