Limite
Penal
Por que "depoimentos" prestados em
delegacia não podem ser usados em juízo?
27 de
março de 2015, 8h01
É cada vez mais comum a
utilização das expressões “declaração na fase inquisitória” e “declaração na
fase judicial”. O adjetivo é muito mais do que o lugar em que as “declarações”
são prestadas. Significa o modo e a finalidade com que são produzidas. Isto
porque a partir da notícia de possível crime, o Estado precisa realizar a
apuração preliminar com o fim de levantar elementos mínimos de materialidade
e indícios de autoria. Do contrário, corre-se o risco de se iniciar a
ação penal sem elementos mínimos. A função da investigação preliminar é a de
levantar elementos de materialidade e autoria da conduta criminosa (meios
probatórios, informantes, testemunhas, perícias, documentos, etc.),
justificando democraticamente a instauração de ação penal (CPP, artigo 12), ou
seja, para que o jogo processual possa ser iniciado a partir da autorização do
estado-juiz (recebimento motivado da denúncia e/ou queixa crime).
Para
instauração de ação penal é necessária a existência de justa causa (elementos
de materialidade e autoria) a ser aferida por investigação e/ou documentos
preliminares. De regra, realiza-se por Inquérito Policial (CPP, artigo 4º e
seguintes), o qual é procedimento administrativo, não jurisdicional, a cargo da
Polícia Judiciária — Estadual ou Federal (artigo 144, parágrafo 4º, CF),
submetido aos princípios da administração pública (legalidade, publicidade,
impessoalidade, moralidade e eficiência — CF, artigo 37)[1].
Evita-se que a ação penal possa ser instaurada como aventura processual, dado
que o simples fato de ser acusado já etiqueta[2]
o sujeito para todo o sempre, mesmo que absolvido ao final. De sorte que é
necessário o controle, por parte do Judiciário, dos requisitos para o exercício
da ação penal.
Dai que
durante a fase anterior à ação penal executam-se “atos de investigação”,
desprovidos da garantia de Jurisdição, do contraditório e da ampla defesa,
dentre outros. Os depoimentos das vítimas e das testemunhas, embora sigam as
regras do CPP, no que couber, são tomados pela autoridade policial sem a
presença do Ministério Público e da Defesa. A destinação dos “atos de
investigação” é a de servir de sustentáculo para o recebimento da ação penal.
Nem mais, nem menos. São declarações produzidas sem contraditório. Logo, não
podem ser qualificadas como “atos de prova”.
Dito de outra
forma, em relação à validade dos elementos colhidos no Inquérito Policial,
diante de suas peculiaridades (sem garantia da Jurisdição, do Contraditório, da
Ampla Defesa, da Motivação dos Atos), cabe distinção: a) em relação às provas
periciais o contraditório será diferido, a saber, no decorrer da instrução
processual os jogadores poderão impugnar os laudos, pareceres, perícias,
inclusive requerendo esclarecimentos e sua renovação; b) no tocante aos
depoimentos testemunhais a renovação é obrigatória. Cuida-se de mero ato de
investigação, sem que o indiciado tenha participado da produção das
informações, nem mesmo controlada pelo Estado Juiz.
A
validade, portanto, é somente para análise da justa causa e cautelares
pré-jogo, como explica Aury Lopes Jr: “O inquérito policial somente pode gerar
o que anteriormente classificamos como atos de investigação e essa limitação de
eficácia está justificada pela forma mediante a qual são praticados, em uma
estrutura tipicamente inquisitiva, representada pelo segredo, a forma escrita e
a ausência ou excessiva limitação do contraditório. Destarte, por não observar
os incisos LIII, LIV, LV e LVI do art. 5o e o inciso IX do art. 93,
da nossa Constituição, bem como o art. 8o da CADH, o inquérito
policial jamais poderá gerar elementos de convicção valoráveis na sentença para
justificar uma condenação.”[3]
Fazendo um
paralelo com a Sindicância e o Processo Administrativo Disciplinar, não resta
muita dúvida que as declarações tomadas de maneira inquisitorial, durante a
apuração preliminar, não servem de elemento probatório posterior, conforme
reiterada jurisprudência (STF MS 22.791 e STJ MS 7.983). Devem ser renovadas,
sob o crivo do contraditório.
Assim,
como passe de mágica, em uma leitura obtusa do art. 155 do CPP, não se pode requentar
os depoimentos prestados à autoridade policial porque violam o contraditório na
produção da prova, com o qual já defendemos uma noção de amor ao contraditório
(aqui). É o mesmo que tornar
irrelevante a Jurisdição, ou seja, se os depoimentos antes valem, qual o
sentido de se renovarem em juízo? Justamente porque antes não havia acusação
formalizada e a acusação e defesa não podem sequer perguntar. A partir do
processo como procedimento em contraditório (Fazzalari), as declarações
realizadas durante a investigação preliminar para fins de condenação são um
nada probatório. E esta variável deve ser considerada, pois há julgadores que
acolhem.
Simples
assim e muitos não param para sequer pensar, no desejo de condenar, prenhe de
deslizamentos imaginários decorrentes da assunção da concepção de Verdade Real,
tão bem criticada por Salah Khaled Jr (aqui), sem falar na
violação do devido processo legal substancial (aqui).
Provavelmente
uma das maiores conquistas do processo penal democrático seja a garantia de ser
‘julgado com base na prova’, ou seja, com base nos elementos produzidos em
juízo, a luz do contraditório e demais garantias constitucionais processuais.
Prova é o que se produz em juízo. O que se faz no inquérito são meros atos de
investigação cuja função endoprocedimental os limita a servir como base para as
decisões interlocutórias da investigação (prisões cautelares, quebra de sigilo
bancário, interceptações telefônicas etc.) e para a decisão de recebimento ou
rejeição da denúncia. Não mais do que isso, como regra (claro que a exceção são
as provas técnicas irrepetíveis e aquelas produzidas antecipadamente através do
respectivo incidente judicial). Os atos do inquérito não se destinam a forma a
convicção do julgador sobre o caso penal, mas apenas indicar o fumus
commissi delicti para a formação da opinio delicti do acusador e a
decisão de recebimento/rejeição.
É por
isso que há mais de uma década sustentamos a “exclusão física dos autos do
inquérito”[4],
como a única forma de assegurar a ‘originalidade’ dos julgamentos, ou seja, de
que alguém será julgado com base na prova judicialmente produzida e em
contraditório pleno. Também é o único mecanismo eficiente para evitar os
falaciosos julgados do estilo: “cotejando a prova judicializada com os
elementos do inquérito”, ou “a prova judicializada é corroborada pela prova
produzida no inquérito”. Sempre que um juiz usa a fórmula mágica do ‘cotejando’
ou do ‘corrobora’, o que ele está dizendo é: não tenho prova judicializada com
suficiência para condenar, mas como o quero fazer, preciso recorrer aos
elementos produzidos na inquisitorialidade do inquérito.
Dessarte,
tecnicamente os elementos do inquérito não são ‘provas’ e, portanto, não servem
para legitimar uma condenação. Ademais, posteriormente em juízo, essa “prova” (rectius
atos de investigação) não serão ‘repetidos’, senão ‘produzidos’. É um equivoco
falar em ‘repetição’ se compreendermos que a prova é originariamente produzida
no processo e em contraditório. O que se fez na fase pré-processual, não é
prova. O contrário é desamor ao contraditório e condenações com a insígnia do
autoritarismo que tocaia o processo penal brasileiro, ainda.
[1] STF, ED.Caut. MS 25.617-6/DF, rel. Min. Celso de Mello: “... a unilateralidade desse
procedimento investigatório não confere ao Estado o poder de agir
arbitrariamente em relação ao indiciado e às testemunhas, negando-lhes, abusivamente,
determinados direitos e certas garantias – como a prerrogativa contra a
auto-incriminação – que derivam do texto constitucional ou de preceitos
inscritos em diplomas legais: (...) O indiciado é sujeito de direitos e dispõe
de garantias, legais e constitucionais, cuja inobservância, pelos agentes do
Estado, além de eventualmente induzir-lhes a responsabilidade penal por abuso
de poder, pode gerar a absoluta desvalia das provas ilicitamente obtidas no
curso da investigação policial.”
[2] BACILA, Carlos Roberto. Estigmas: um estudo sobre os preconceitos. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005.
[3] LOPES JR, Aury. Direito Processual Penal. São Paulo: Saraiva, 2015.
[4] Desde nossa primeira obra “Sistemas de Investigação Preliminar no Processo Penal”, publicada em 2001. Atualmente o tema é tratado nos livros “Investigação Preliminar” e “Direito Processual Penal”, ambos publicados pela Editora Saraiva.
[2] BACILA, Carlos Roberto. Estigmas: um estudo sobre os preconceitos. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005.
[3] LOPES JR, Aury. Direito Processual Penal. São Paulo: Saraiva, 2015.
[4] Desde nossa primeira obra “Sistemas de Investigação Preliminar no Processo Penal”, publicada em 2001. Atualmente o tema é tratado nos livros “Investigação Preliminar” e “Direito Processual Penal”, ambos publicados pela Editora Saraiva.
Aury Lopes Jr é doutor em Direito Processual
Penal, professor Titular de Direito Processual Penal da PUC-RS e professor
Titular no Programa de Pós-Graduação em Ciências Criminais, Mestrado e
Doutorado da PUC-RS.
Alexandre Morais da Rosa é juiz em Santa
Catarina, doutor em Direito pela UFPR e professor de Processo Penal na UFSC
(Universidade Federal de Santa Catarina) e na Univali (Universidade do Vale do
Itajaí).
Revista Consultor
Jurídico, 27 de março de 2015, 8h01
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