domingo, 26 de abril de 2015

O DIREITO COMO UNIVERSO HERMENÊUTICO



O DIREITO COMO UNIVERSO HERMENÊUTICO

Ricardo Maurício Freire Soares
Professor de Graduação e Pós-Graduação da UNIME. Mestre em Direito - UFBA. Membro do Instituto dos Advogados Brasileiros e do Instituto dos Advogados da Bahia.

Bordada de cigarras toma o campo/ - Que dizes, Marco Aurélio, dessas velhas filósofas do simples?/ Pobre é teu pensamento!/ Corre a água do rio mansamente./ - Oh, Sócrates! Que vês na água que corre para a amarga morte?/ Que pobre e triste fé!/ Despetalam-se as rosas sobre o lodo./ - Oh, doce João de Deus!/ Que vês nestas pétalas graciosas?/ Pequeno é teu coração! (Federico Garcia Lorca)
A porta da verdade estava aberta/ Mas só deixava passar/ Meia pessoa de cada vez/ Assim não era possível atingir toda a verdade./ Porque a meia pessoa que entrava/ Só trazia o perfil de meia verdade/ E a segunda metade/ Voltava igualmente com meio perfil/ E os meios perfis não coincidiam./ Arrebentavam a porta, derrubavam a porta, / chegaram ao lugar luminoso onde a verdade esplendia seus fogos./ Era dividida em metades diferentes uma da outra. / Chegou-se a discutir qual a metade mais bela./ Nenhuma das duas era totalmente bela e carecia optar./ Cada um optou conforme seu capricho, sua ilusão, sua miopia. (Carlos Drummond de Andrade)
Creio no Mundo como num malmequer, porque o vejo. Mas não penso nele. porque pensar é não compreender... O Mundo não se fez para pensarmos nele (Pensar é estar doente dos olhos, mas para olharmos para ele e estarmos de acordo...). Eu não tenho filosofia: tenho sentidos... Se falo na Natureza não é porque saiba o que ela é,  mas porque a amo, e amo-a por isso, porque quem ama nunca sabe o que ama, nem sabe porque ama, nem o que é amar... Amar é a eterna inocência, e  a única inocência é não pensar... (Fernando Pessoa)
Interpretai com frescura e vivacidade – / se não tirarmos ou libertarmos o sentido da letra,/ algo aí nos ficará oculto. (Goethe)
Resumo: O presente trabalho se propõe a evidenciar a dimensão hermenêutica do conhecimento jurídico. Com base nos fundamentos filosóficos, a interpretação do direito pode ser vislumbrada como uma modalidade de compreensão, capaz de apreender e construir os valores e finalidades da ordem jurídica.  
Palavras-chave: Interpretação – conhecimento
Abstract: The present work considers to evidence the hermeneutic dimension of the juridique knowledge. On the basis of the philosophical beddings, the interpretation of the right can be glimpsed as a modality of understanding, capable to apprehend and to construct to the standards and purposes of the juridique order.
Key-words:  Interpretation – knowledge
Sumário: 1. Hermenêutica e interpretação 2. Raízes filosóficas da hermenêutica jurídica 3. Interpretação do direito: uma atividade de compreensão 4. Tecnologia hermenêutica: da letra ao espírito do direito. 5. Do subjetivismo ao novo objetivismo jurídico. 6. Considerações finais. 7. Bibliografia

1. HERMENÊUTICA E INTERPRETAÇÃO
As raízes da palavra hermenêutica residem no verbo grego hermeneuein, usualmente traduzido por interpretar, bem como no substantivo hermeneia, a designar interpretação. A etimologia registra ainda que a palavra interpretação provém do termo latino interpretare (inter-penetrare), significando penetrar mais para dentro. Isto se deve à prática religiosa de feiticeiros e adivinhos, os quais introduziam suas mãos nas entranhas de animais mortos, a fim de conhecer o destino das pessoas e obter respostas para os problemas humanos.
Estes vocábulos remetem também à mitologia antiga, evidenciando os caracteres conferidos ao Deus-alado Hermes. Esta figura mítica era, na visão da antigüidade ocidental, responsável pela mediação entre os Deuses e os homens. Hermes, a quem se atribui a descoberta da escrita, atuava como um mensageiro, unindo a esfera divino - transcendental e a civilização humana.
Decerto, não há como negar a compatibilidade da referida metáfora de Hermes quando constatamos o objeto mesmo das especulações suscitadas pela hermenêutica: a interpretação. É que o intérprete, nos variegados planos da apreensão cognitiva, atua verdadeiramente como um intermediário na relação estabelecida entre o autor de uma obra e a comunidade humana.
A hermenêutica é, seguramente, um tema essencial para o conhecimento. Tudo o que é apreendido e representado pelo sujeito cognoscente depende de práticas interpretativas. Como o mundo vem à consciência pela palavra, e a linguagem é já a primeira interpretação, a hermenêutica torna-se inseparável da própria vida humana..
Historicamente, a hermenêutica penetrou, de forma gradativa, no domínio das ciências humanas e da filosofia, adquirindo, com o advento da modernidade, diversos significados. Neste sentido, Palmer (1999, p.43-44) assinala que:
O campo da hermenêutica tem sido interpretado (numa ordem cronológica pouco rigorosa) como: 1) uma teoria da exegese bíblica; 2) uma metodologia filológica geral; 3) uma ciência de toda a compreensão lingüística; 4) uma base metodológica da geisteswissenschaften; 5) uma fenomenologia da existência e da compreensão existencial; 6) sistemas de interpretação, simultaneamente recolectivos e inconoclásticos, utilizados pelo homem para alcançar o significado subjacente aos mitos e símbolos (...) Cada definição representa essencialmente um ponto de vista a partir do qual a hermenêutica é encarada; cada uma esclarece aspectos diferentes mas igualmente legítimos do acto da interpretação, especialmente da interpretação de textos. O próprio conteúdo da hermenêutica tende a ser remodelado com estas mudanças de perspectiva.
Buscando uma síntese das definições expostas, o vocábulo hermenêutica será utilizado, no presente trabalho, para designar um saber que procura problematizar os pressupostos, a natureza, a metodologia e o escopo da interpretação humana, nos planos artístico, literário e jurídico. Por sua vez, a prática interpretativa indicará uma espécie de compreensão dos fenômenos culturais, nos termos doravante explicitados.
2. RAÍZES FILOSÓFICAS DA HERMENÊUTICA JURÍDICA
A investigação dos fundamentos filosóficos da hermenêutica se justifica, especialmente, no campo jurídico. Isto porque o horizonte tradicional da hermenêutica técnica se revela insuficiente para o desiderato da interpretação do direito. Enquanto instrumental para a exegese de textos, o saber hermenêutico é reduzido, nesta perspectiva, a um caleidoscópio intricado de ferramentas teóricas, com vistas à descoberta de uma verdade pré-existente.
Ao revés, torna-se ser necessário um novo tratamento paradigmático, porque mais amplo, capaz de radicar em novas bases a interpretação jurídica. Trata-se da hermenêutica filosófica, uma proposta de reunir os problemas gerais da compreensão no tratamento das práticas interpretativas do direito.
Neste sentido, afigura-se oportuna a lição de Arruda Júnior e Gonçalves (2002, p.233):
No ambiente jurídico, a hermenêutica técnica mais tem servido de abrigo metodológico para os que crêem (ou para os que preferem fazer crer que crêem) ser a interpretação uma atividade neutra e científica, na qual outros universos de sentido, como o dos valores, dos interesses e da subjetividade, não exercem ingerência alguma. Discutir a hermenêutica filosófica como um novo paradigma cognitivo para saber e a prática jurídica envolvem a reformulação preliminar daquele território metodológico no qual são radicalmente delimitadas as possibilidades de percepção e funcionamento do direito. A concepção hermenêutica sugere formas alternativas, menos cientificistas e mais historicizadas, para as gerações vindouras apreenderem o direito como um entre os diversos outros componentes do fenômeno normativo-comportamental mais geral.
Sendo assim, dando vazão a esta hermenêutica filosófica, cumpre mapear as referências teóricas mais importantes para o delineamento do saber hermenêutico, especialmente, a partir da idade moderna.
Com efeito, após o surgimento das antigas escolas de hermenêutica bíblica, em Alexandria e Antioquia, passando, durante a idade média pelas interpretações agostiniana e tomista das sagradas escrituras, a hermenêutica desembarca na modernidade como uma disciplina de natureza filológica. Nos albores do mundo moderno, a hermenêutica volta-se para a sistematização de técnicas de leitura, as quais serviriam à compreensão de obras clássicas e religiosas. As operações filológicas de interpretação desenvolvem-se em face de regras rigorosamente determinadas: explicações lexicais, retificações gramaticais e crítica dos erros dos copistas. O horizonte hermenêutico é o da restituição de um texto, mais fundamentalmente de um sentido, considerado como perdido ou obscurecido. Numa tal perspectiva, o sentido é menos para construir do que para reencontrar, como uma verdade que o tempo teria encoberto.
A hermenêutica penetra, então, no campo dos saberes humanos. No início do século XIX, com o teólogo protestante Friedrich Schleiermacher, assiste-se a uma generalização do uso da hermenêutica. Esta, embora conservando os seus laços privilegiados com os estudos bíblicos e clássicos, passa a abarcar todos os setores da expressão humana. A atenção está cada vez mais orientada não apenas para o texto, mas, sobretudo, para o seu autor. A leitura de um texto implica, assim, em dialogar com um autor e esforçar-se por reencontrar a sua intenção originária.
Para tanto, como se depreende dos escritos de Schleiermacher (1999), seria necessário abandonar a literalidade da interpretação gramatical em prol do que ele denominou de interpretação psicológica. Caberia, assim, ao intérprete mapear as circunstâncias concretas que influenciaram a elaboração do texto, recriando a mente do autor de acordo com os influxos sociais que marcaram sua existência.
É, entretanto, com a obra do filósofo Wilhelm Dilthey, que a hermenêutica adquire o estatuto de um modo de conhecimento da vida humana, especialmente apto para apreender a cultura, irredutível em si mesma aos fenômenos naturais. Dilthey propõe, em verdade, o desmantelamento do eu transcendental dos idealistas alemães, valorizando a experiência humana no processo hermenêutico. Situa, pois, a tarefa interpretativa no plano histórico, propondo a explicação e a compreensão, respectivamente, como modos de cognição da natureza e da realidade sócio-cultural.
O texto, enquanto objeto hermenêutico, figura como a própria realidade humana no seu desenvolvimento histórico. A prática interpretativa deve restituir, por assim dizer, a intenção que guiou o agente no momento da tomada de decisão, permitindo alcançar o significado da conduta humana. Sendo assim, Dilthey sustenta que a riqueza da experiência humana possibilita ao hermeneuta internalizar, por uma espécie de transposição, uma experiência análoga exterior e, portanto, compreendê-la.
Nos albores do século XX, firma-se uma a hermenêutica radicada na existência. Merece registro a contribuição existencialista de Martin Heidegger. Deveras, Heidegger (1997) opera duas rupturas em relação à concepção hermenêutica, preconizada por Dilthey.
Em primeiro lugar, a hermenêutica não é inserida no quadro gnoseológico, como um problema de metodologia das ciências humanas. Não se trata, como em Dilthey, de opor o ato de compreensão, próprio das ciências humanas, ao caminho da explicação, via metodológica das ciências naturais. A compreensão passa a ser visualizada não como um ato cognitivo de um sujeito dissociado do mundo, mas, isto sim, como um prolongamento essencial da existência humana. Compreender é um modo de estar, antes de configurar-se como um método científico.
Ademais, a compreensão não está, na obra de Heidegger, ligada ao problema do reencontro do outro. Com Heidegger, a indagação hermenêutica considera menos a relação do intérprete com o outro do que  a relação que o hermeneuta estabelece com a sua própria situação no mundo. O horizonte da compreensão é a apreensão e o esclarecimento de uma dimensão primordial, que precede a distinção sujeito/objeto: a do ser-no-mundo.
Sendo assim, na visão de Heidegger, o enfoque de toda a Filosofia reside no ser-aí, vale dizer, no ser-no-mundo, ao contrário dos julgamentos definitivos acerca das coisas-no-ser ou coisas-lá-fora. A pedra angular de seu monumento teórico é o conceito de dasein, ou seja, a realidade que tem a ver com a natureza do próprio ser. Heidegger rompe, assim, o dualismo sujeito-objeto em favor de um fenômeno unitário capaz de contemplar o eu e o mundo, conciliando as diversas dimensões da temporalidade humana - passado (sido), presente (sendo) e futuro (será) – como momentos que integram a própria experiência hermenêutica.
Posteriormente, emerge um novo paradigma hermenêutico, que conforma a atividade interpretativa como situação humana. Desponta a obra de Hans Georg Gadamer, para quem a interpretação, antes de ser um método, é a expressão de uma situação do homem. O hermeneuta, ao interpretar uma obra, está já situado no horizonte aberto pela obra, o que Gadamer denomina de círculo hermenêutico. A interpretação é, sobretudo, a elucidação da relação que o intérprete estabelece com a tradição de que provém. Na exegese de textos literários, o significado não aguarda ser desvendado pelo intérprete. Em verdade, sustenta Gadamer (1997), o significado emerge à medida que o texto e o intérprete envolvem-se num permanente diálogo, balizado pela compreensão prévia que o sujeito cognoscente já possui do  objeto – a chamada pré-compreensão. É esta interação hermenêutica que permite ao intérprete mergulhar na lingüisticidade do objeto hermenêutico, aproveitando-se da textura aberta de uma dada obra.
Como síntese desta evolução de idéias, desenvolve-se a fundamentação hermenêutica de Paul Ricoeur. O notável pensador adota uma posição conciliadora em face da dicotomia diltheyana entre compreensão e explicação.
Ricoeur (1989) torna a referida dicotomia complementar através da consideração do fenômeno humano como intermédio simultaneamente estruturante (o intencional e o possível) e estruturado (o involuntário e o explicável), articulando a pertença ontológica e a distanciação metodológica. A autonomização da hermenêutica diante da fenomenologia husserliana é um dos seus temas fulcrais. Abandonando o primado da subjetividade e o idealismo de Husserl, assumindo a pertença participativa como pré-condição de todo esforço interpretativo (Heidegger e Gadamer), Ricoeur desenvolve suas concepções teóricas, sem esquecer os precursores da teoria geral da interpretação (Schleiermacher e Dilthey).
Procura-se, assim, consolidar um modelo dialético que enlaçe a verdade como desvelamento (ontologia da compreensão) e a exigência crítica  representada pelos métodos rigorosos  das ciências humanas (necessidade de uma explicação). Deste modo, o escopo da interpretação será reconstruir o duplo trabalho do texto através do círculo ou arco hermenêutico: no âmbito da dinâmica interna que preside à estruturação da obra (sentido) e no plano do poder que tem esta obra para se projetar fora de si mesma, gerando um mundo (a referência).
Com a interpretação de um texto, segundo Ricoeur, abre-se um mundo, ou melhor, novas dimensões do nosso ser-no-mundo, porquanto a linguagem mais do que descrever a realidade, revela um novo horizonte para a experiência humana.
De acordo com Ricoeur, porque a hermenêutica tem a ver com textos simbólicos de múltiplos significados, os discursos textuais podem configurar uma unidade semântica que tem - como os mitos - um sentido mais profundo. A hermenêutica seria o sistema pelo qual o significado se revelaria, para além do conteúdo manifesto. O desafio hermenêutico seria tematizar reflexivamente a realidade que está por detrás da linguagem humana.
Deste modo, é possível afirmar que cada uma destas definições reflete mais do que um estágio histórico do saber hermenêutico, indicando abordagens relevantes para o problema da interpretação. Idéias como a recusa à literalidade textual, a historicidade, a abertura aos valores, a dialogicidade e o horizonte lingüístico estão umbilicalmente ligadas à hermenêutica jurídica e ao exercício da interpretação do direito.
3. INTERPRETAÇÃO DO DIREITO: UMA ATIVIDADE DE COMPREENSÃO
O mundo jurídico pode ser vislumbrado como uma grande rede de interpretações. Os profissionais do direito estão, a todo momento, interpretando a ordem jurídica, como sustenta Wróblewski (1988, p. 17):
La interpretación legal juega un papel central en cualquier discurso jurídico. En el discurso jurídico-prático se relaciona con la determinación del significado de los textos legales y a menudo influye en la calificación de los hechos a los que se aplican las regras legales. En el discurso teórico-jurídico, en el nível de la dogmática jurídica, la llamada interpretación doctrinal se utiliza con frecuencia para sistematizar el derecho en vigor y para construir conceptos jurídicos. Las regras legales se interpretan también en la actividad legislativa cuando el legislador tiene que determinar el significado de un texto legal ya existente y cuando considera las posibles interpretaciones que, en situaciones futuras, puedan tener las regras que él va a promulgar.
Diante da profusão de sentidos da ordem jurídica, reflexo de uma dada cultura humana, a interpretação do direito opera uma verdadeira compreensão, desenvolvendo-se numa dimensão axiológica.
Com efeito, a própria evolução do saber hermenêutico vem tornando patente a diversidade dos estilos de conhecimento dos objetos naturais e culturais. Compreensão e explicação são os modos cognitivos dos objetos reais. No tocante aos objetos culturais, compreende-se, num conhecimento mais íntimo, porque é possível ter a vivência de revivê-los. Compreender um fenômeno, por sua vez, significa envolvê-lo na totalidade de seus fins, em suas conexões de sentido. Ao contrário, os objetos naturais, por não consubstanciarem um sentido humano, somente permitem a explicação, o que se obtém referindo tais fenômenos a uma causa. Explicar seria descobrir na realidade aquilo que na realidade mesma se contém, sendo que, nas ciências naturais, a explicação pode ser vista, genericamente, como objetiva, neutra e refratária ao mundo dos valores.
Disso resulta que, quando explicamos algo, descrevemos ontologicamente o objeto de análise, ao passo que, na atividade de compreender, torna-se imprescindível a existência de uma contribuição positiva do sujeito, o qual realizará as conexões necessárias, executando uma tarefa eminentemente valorativa e finalística.
As ordens sociais, inclusive a jurídica são objetos da cultura humana, constituindo realidades significativas que devem ser corretamente interpretadas.
Neste sentido, leciona Saldanha (1988, p.244):
Constituindo uma estrutura onde entram valores (ou valorações), toda ordem porta significações. Se por um lado, a ordem existe na medida em que é cumprida ou seguida, é evidente que seu cumprimento confirma suas significações. Toda atividade interpretativa tem de visar, na ordem, aquilo que é compreensível, isto é, inteligível em sentido concreto. As significações se comprovam ao ser confirmadas no plano concreto. Destarte pode-se dizer que um sistema (econômico, político, jurídico) constitui uma ordem na medida em que é compreensível e interpretável em direção ao concreto.
Para a apreensão da ordem jurídica, como a de qualquer outra objetivação do espírito humano, exige-se a utilização de um método adequado, de natureza empírico-dialética, constituído pelo ato gnoseológico da compreensão.
Conforme assinala Machado Neto (1975, p.11), é mérito singular do jusfilósofo argentino Carlos Cossio a descoberta de que o ato gnoseológico da compreensão se realiza através de um método empírico-dialético:
Es, también, obra de Cossio ese complemento essencial de la epistemología de la comprensión al descubrir que ésta se da mediante un método que es empírico-dialéctico. Empírico, porque se trata de hechos, ya que los objetos culturales son reales espaciotemporales, como ya vimos, y el modo de topar con ellos es un modo empírico, perceptivo, ya que el substrato lo percibimos con intuición sensible, viendo, oyendo, oliendo, gustando, palpando... Y dialéctico porque la comprensión se da en un trabajo dialéctico, algo así como un diálogo que el espíritu emprende entre el substrato y el sentido, para comprender el sentido en su substrato y el substrato por su sentido.
Desta forma, os significados do ordenamento jurídico, assim como o de todo objeto cultural, revelam-se num processo dialético, num ir e vir da materialidade do seu substrato à vivência do seu sentido espiritual, vale dizer, do seu texto tal como lingüisticamente estruturado aos motivos que inspiraram a sua elaboração. Esse ir e vir dialético manifesta-se, metaforicamente, como um balançar de olhos entre texto e realidade, entre norma e situação normada, num processo aberto e infinito, significativamente ilustrado pela figura geométrica da espiral.
Também a hermenêutica jurídica assim se processa. Ao interpretar um comportamento, no plano da intersubjetividade humana, o hermeneuta irá referi-lo à norma jurídica, o comportamento figurando como substrato e a norma como o sentido jurídico de faculdade, prestação, ilícito ou sanção. Como este significado jurídico é co-participado pelos atores sociais, o intérprete do direito atua como verdadeiro porta-voz do entendimento societário, à proporção que exterioriza os valores fundantes de uma comunidade jurídica.
4. TECNOLOGIA HERMENÊUTICA: DA LETRA AO ESPÍRITO DO DIREITO
Ao disciplinar a conduta humana, os modelos normativos utilizam palavras - signos lingüísticos que devem expressar o sentido daquilo que deve ser. A compreensão jurídica dos significados que referem os signos demanda o uso de uma tecnologia hermenêutica.
Ainda que os estudos mais recentes de Hermenêutica Jurídica apontem para a sua essência filosófica, não há como negar a sua relevante função instrumental, à medida que oferece técnicas voltadas para o norteamento das práticas interpretativas do direito.
Saliente-se, por oportuno, que as diversas técnicas interpretativas não operam isoladamente. Antes se completam, mesmo porque não há, na teoria jurídica interpretativa, uma hierarquização segura das múltiplas técnicas de interpretação. Neste diapasão, sustenta Mourullo (1988, p.64):
En realidad la interpretación de la norma jurídica es siempre pluridimensional, no unidimensional, y se va desarrollando desde diversas perspectivas. Se habla, como de todos es sabido, de una interpretación histórica, sistemática, gramatical y teleológica. Cada una de estas interpretaciones nos ofrece distintos puntos de vista para comprenderle sentido último de la norma.
Tradicionalmente, a doutrina vem elencando as seguintes técnicas interpretativas: a gramatical, a lógico-sistemática, a histórica, a sociológica e a teleológica.
Através da técnica gramatical ou filológica, o hermeneuta se debruça sobre as expressões normativas, investigando a origem etimológica dos vocábulos e aplicando as regras estruturais de concordância ou regência, verbal e nominal. Trata-se de um processo hermenêutico quase que superado, ante o anacronismo do brocardo jurídico – in claris cessat interpretatio.
Ao processo hermenêutico gramatical, logo se ajunta a técnica lógico-sistemática, que consiste em referir o texto ao contexto normativo de que faz parte, correlacionando, assim, a norma ao sistema do inteiro ordenamento jurídico e até de outros sistemas paralelos, conformando o chamado direito comparado.
Em se tratando de interpretação legal, deve-se, portanto, cotejar o texto normativo com outros do mesmo diploma legal ou de legislações diversas, mas referentes ao mesmo objeto, visto que, examinando as prescrições normativas, conjuntamente, é possível verificar o sentido de cada uma delas.
Nos domínios da hermenêutica geral, com a internalização do conceito-chave de círculo hermenêutico, poderá o jurista afirmar que só existe interpretação sistemática. Isto porque a compreensão das normas jurídicas, como, de resto, a compreensão de todos os objetos culturais, ocorre no âmbito de uma estrutura circular, na qual se apreende o todo a partir das partes, e, reciprocamente, as partes a partir do todo sistêmico.
Munido da técnica histórica, o intérprete perquire os antecedentes imediatos (v.g., declaração de motivos, debates parlamentares, projetos e anteprojetos) e remotos (e.g., institutos antigos) do modelo normativo.
A seu turno, processo sociológico de interpretação do direito objetiva: conferir a aplicabilidade da norma jurídica às relações sociais que lhe deram origem; elastecer o sentido da norma a relações novas, inéditas ao momento de sua criação; e temperar o alcance do preceito normativo, a fim de fazê-lo espelhar as necessidades atuais da comunidade jurídica.
Segue-se, umbilicalmente ligado à técnica sociológica, o processo teleológico que objetiva depreender a finalidade do modelo normativo. Daí resulta que a norma se destina a um escopo social, cuja valoração dependerá do hermeneuta, com base nas circunstâncias concretas de cada situação jurídica. A técnica teleológica procura, deste modo, delimitar o fim, vale dizer, a ratio essendi do preceito normativo, para a partir dele determinar o seu real significado. A delimitação do sentido normativo requer, pois, a captação dos fins para os quais se elaborou a norma jurídica.
A interpretação teleológica serve de norte para os demais processos hermenêuticos. Isto é assim porque convergem todas as técnicas interpretativas em função dos objetivos que informam o sistema jurídico. Toda interpretação jurídica ostenta uma natureza teleológica, fundada na consistência axiológica do direito. Compartilhando deste entendimento, pontifica Reale (1996, p.285):
Interpretar uma lei importa, previamente, em compreendê-la na plenitude de seus fins sociais, a fim de poder-se, desse modo, determinar o sentido de cada um de seus dispositivos. Somente assim ela é aplicável a todos os casos que correspondam àqueles objetivos. Como se vê, o primeiro cuidado do hermeneuta contemporâneo consiste em saber qual a finalidade social da lei, no seu todo, pois é o fim que possibilita penetrar na estrutura de suas significações particulares.
Logo, o sincretismo dos caminhos interpretativos, iluminados que são pela teleologia do direito, permite que o intérprete transcenda da palavra em direção ao espírito do ordenamento jurídico.
5. DO SUBJETIVISMO AO NOVO OBJETIVISMO JURÍDICO
O transcurso histórico da hermenêutica jurídica vem sendo marcado pela polarização entre o subjetivismo e o objetivismo. Trata-se de grande polêmica relativa ao referencial que o intérprete do direito deve seguir para desvendar o sentido e o alcance dos modelos normativos, especialmente das normas legais: a vontade do legislador (voluntas legislatoris) ou a vontade da lei (voluntas legis).
O problema é apresentado por Engish (1988, p.170):
Antes, é precisamente aqui que começa a problemática central da teoria jurídica da interpretação: O conteúdo objectivo da lei e, conseqüentemente, o último escopo da interpretação, são determinados e fixados através da vontade do legislador histórico, manifestada então e uma vez por todas, de modo que a dogmática jurídica deve seguir as pegadas do historiador (...), ou não será, pelo contrário, que o conteúdo objectivo da lei tem autonomia em si mesmo e nas suas palavras, enquanto vontade da lei, enquanto sentido objectivo que é independente do mentar e do querer subjectivos do legislador histórico e, que, por isso, em caso de necessidade, é capaz de movimento autônomo, é susceptível de evolução como tudo aquilo que participa do espírito objectivo?
Sendo assim, a corrente subjetivista pondera que o escopo da interpretação é estudar a vontade histórico-psicológica do legislador expressa na norma. A interpretação deve verificar, de modo retrospectivo, o pensamento do legislador estampado no modelo normativo. De outro lado, a vertente objetivista preconiza que, na interpretação do direito, deve ser vislumbrada a vontade da lei, que, enquanto sentido objetivo, independe do querer subjetivo do legislador. A norma jurídica seria a vontade transformada em palavras, uma força objetivada independente do seu autor. O sentido incorporado no modelo normativo se apresentaria mais rico do que tudo o que o seu criador concebeu, porque suscetível de adaptação aos fatos e valores sociais.
Neste sentido, a depender do referencial hermenêutico utilizado, a interpretação do direito modulará a própria expressão do discurso jurídico, valorizando a ordem, com a adoção do subjetivismo, ou a mudança, quando iluminada pelo objetivismo.
Com base neste entendimento, pondera Andrade (1992, p.19):
Como uma operação de esclarecimento do texto normativo, a interpretação aumenta a eficácia retórica ou comunicativa do direito, que é uma linguagem do poder e de controle social. E dependendo da técnica adotada, a interpretação pode exercer uma função estabilizadora ou renovadora e atualizadora da ordem jurídica, já que o direito pode ser visto como uma inteligente combinação de estabilidade e movimento, não recusando as mutações sociais. Assim, o direito pretende ser simultaneamente estável e mutável. Todavia é preciso ressaltar que a segurança perfeita significaria a absoluta imobilidade da vida social, enfim, a impossibilidade da vida humana. Por outro lado, a mutabilidade constante, sem um elemento permanente, tornaria impossível a vida social. Por isso o direito deve assegurar apenas uma dose razoável de ordem e organização social, de tal modo que essa ordem satisfaça o sentido de justiça e dos demais valores por ela implicados.
Combinando a exigência de segurança com o impulso incessante por transformação, a hermenêutica jurídica contemporânea se inclina, pois, para a superação do tradicional subjetivismo - voluntas legislatoris, em favor de um novo entendimento do objetivismo - voluntas legis, realçando o papel do intérprete na exteriorização dos significados da ordem jurídica.
Com base neste redimensionamento do modelo objetivista, pode-se afirmar que o significado jurídico não está à espera do intérprete, como se o objeto estivesse desvinculado do sujeito cognoscente – o hermeneuta. Isto porque conhecimento é um fenômeno que consiste na apreensão do objeto pelo sujeito, não do objeto propriamente dito, em si e por si, mas do objeto enquanto objeto do conhecimento.
O objeto do conhecimento, portanto, é, de certo modo, uma criação do sujeito, que nele põe ou supõe determinadas condições para que possa ser percebido. Nessa perspectiva, não tem sentido cogitar-se de um conhecimento das coisas em si mesmas, mas apenas de um conhecimento de fenômenos, isto é, de coisas já recobertas por aquelas formas, que são condições de possibilidade de todo conhecimento. Em virtude da função constitutiva do sujeito no âmbito da relação ontognosiológica, não se poderá isolar o intérprete do objeto hermenêutico.
Eis o magistério de Pasqualini (2002, p.171):
Na acepção mais plena, o sentido não existe apenas do lado do texto, nem somente do lado do intérprete, mas como um evento que se dá em dupla trajetória: do texto (que se exterioriza e vem à frente) ao intérprete; e do intérprete (que mergulha na linguagem e a revela) ao texto. Esse duplo percurso sabe da distância que separa texto e intérprete e, nessa medida, sabe que ambos, ainda quando juntos, se ocultam (velamento) e se mostram (desvelamento). Longe de sugerir metáforas forçadas, a relação entre texto e intérprete lembra muito a que se estabelece entre músico e instrumento musical: sem a caixa de ressonância de um violino, suas cordas não têm nenhum valor, e essas e aquela, sem um violinista, nenhuma utilidade.
O conhecimento dos objetos culturais também não se identifica com o objeto desse conhecimento, conclusão que se impõe, com mais força, na apreensão da cultura humana, à medida que tais objetos, sendo realidades significativas ou objetivações do espírito, exigem maior criatividade do sujeito para se revelarem em toda plenitude. Como o direito integra o mundo cultural, o conhecimento das normas jurídicas está submetido a todas as vicissitudes que singularizam o processo gnosiológico do espírito humano.
O significado objetivo dos modelos normativos é, em larga medida, uma construção dos sujeitos da interpretação jurídica, com base em dados axiológicos extraídos da realidade social. Toda norma só vigora, portanto, na interpretação que lhe atribui o aplicador. O sentido da norma legal não é um ato voluntário, completamente produzido no momento em que se dá origem à lei, mas uma energia que a regenera de modo contínuo, como se estivesse a produzi-la numa gestação infinita. A interpretação jurídica não consiste em pensar de novo o que já foi pensado, mas em conceber até ao fim aquilo que já começou a ser pensado pelo legislador, de modo a delimitar a real vontade da lei.
Neste diapasão, leciona Bergel (2001, p.320):
A questão não é então saber se o intérprete deve ser médium ou cientista, se pratica obra jurídica ou política, nem se a interpretação participa da criação ou da aplicação das normas jurídicas. Isso depende somente da liberdade que se lhe reconhece ou da fidelidade que se lhe impõe com referência ao direito positivo. Observa-se, por certo, que a lei só adquire um sentido com a aplicação que lhe é dada e que o poder assim reconhecido ao intérprete atesta a fragilidade da ordem normativa: nenhum preceito da lei., diz-se ainda, recebe seu sentido de um âmago legislativo; torna-se significativo com a aplicação que lhe é dada e graças à  interpretação que esta implica.
6. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Em face do exposto, pode-se concluir que:
- o saber hermenêutico desponta no quadro geral do conhecimento humano, ao problematizar as diversas modalidades de interpretação;
- a hermenêutica jurídica, iluminada pelos contributos filosóficos, oferece relevantes subsídios para a interpretação do direito;
- a interpretação jurídica pode ser concebida como uma atividade de compreensão, por envolver a apreciação dos valores e finalidades de um fenômeno histórico-cultural;
- as técnicas hermenêuticas permitem a superação da literalidade das fórmulas normativas em favor da teleologia do sistema jurídico;
- a transição do subjetivismo para o novo objetivismo hermenêutico possibilita o desenvolvimento de uma interpretação jurídica dinâmica e prospectiva.
7. BIBLIOGRAFIA
ANDRADE, Christiano José de. O problema dos métodos da interpretação jurídica. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1992.
ARRUDA JÚNIOR, Edmundo Lima de; GONÇALVES, Marcus Fabiano. Fundamentação ética e hermenêutica – alternativas para o direito. Florianópolis-SC: CESUSC, 2002.
BERGEL, Jean-Louis. Teoria geral do direito. São Paulo: Martins Fontes, 2001.
ENGISH, Karl. Introdução ao Pensamento Jurídico. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1988.
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REFLEXÕES SOBRE O JUSNATURALISMO : O DIREITO NATURAL COMO DIREITO JUSTO




Ricardo Maurício Freire Soares
Doutorando em Direito Público e Mestre em Direito (UFBA). Professor das Faculdades de Direito da UNIFACS e da UFBA. Membro do Instituto dos Advogados Brasileiros. E-mail: ric.mauricio@ig.com.br.

Sumário: 1. Caracteres do jusnaturalismo. 2. Jusnaturalismo cosmológico. 3. Jusnaturalismo teológico. 4. Jusnaturalismo racionalista. 5. Jusnaturalismo contemporâneo. 6. Críticas ao jusnaturalismo.  Considerações finais. Referências

1. CARACTERES DO JUSNATURALISMO

O jusnaturalismo se afigura como uma corrente jurisfilosófica de fundamentação do direito justo que remonta às representações primitivas da ordem legal de origem divina, passando pelos sofistas, estóicos, padres da igreja, escolásticos, racionalistas dos séculos XVII e XVIII, até a filosofia do direito natural do século XX.

Com base no magistério de Norberto Bobbio (1999, pp. 22-23), podem ser vislumbradas duas teses básicas do movimento jusnaturalista. A primeira tese é a pressuposição de duas instâncias jurídicas: o direito positivo e o direito natural. O direito positivo corresponderia ao fenômeno jurídico concreto, apreendido através dos órgãos sensoriais, sendo, deste modo, o fenômeno jurídico empiricamente verificável,  tal como ele se expressa através das fontes de direito, especialmente, aquelas de origem estatal. Por sua vez, o direito natural corresponderia a uma exigência perene, eterna ou imutável de um direito justo, representada por um valor transcendental ou metafísico de justiça. A segunda tese do jusnaturalismo é a superioridade do direito natural em face do direito positivo.  Neste sentido, o direito positivo deveria,  conforme a doutrina jusnaturalista,  adequar-se aos parâmetros imutáveis e eternos de justiça. O direito natural enquanto representativo da justiça serviria como referencial valorativo (o direito positivo deve ser justo) e ontológico (o direito positivo injusto deixa de apresentar juridicidade), sob pena da ordem jurídica  identificar-se com a força ou o mero arbítrio. Neste sentido, o direito vale caso seja justo e, pois, legítimo, daí resultando a subordinação da validade à legitimidade da ordem jurídica.   

Embora se oriente pela busca de  uma justiça eterna e imutável, a doutrina do direito natural ofereceu, paradoxalmente, diversos fundamentos para a compreensão de um direito justo ao longo da história ocidente. Diante disto, o jusnaturalismo pode ser agrupado nas seguintes categorias: a) O jusnaturalismo cosmológico, vigente na antigüidade clássica; b) o jusnaturalismo teológico, surgido na Idade Média, tendo como fundamentojurídico a idéia da divindade  como um ser onipotente, onisciente e onipresente; c) o jusnaturalismo racionalista, surgido no seio das revoluções liberais burgueses do século XVII e XVIII, tendo como fundamento a razão humana universal; d) o jusnaturalismo contemporâneo, gestado no século XX , que enraiza a justiça no plano histórico e social,  atentando para as diversas acepções culturais acerca do direito justo.

2. JUSNATURALISMO COSMOLÓGICO

O jusnaturalismo cosmológico foi a doutrina do direito natural que caracterizou a antigüidade greco-latina, fundado na idéia de que os direitos naturais corresponderiam à dinâmica do próprio universo, refletindo as leis eternas e imutáveis que regem o funcionamento do cosmos.

De acordo com Danilo Marcondes (1997, pp. 26-35), antes mesmo do surgimento da filosofia, nos moldes conhecidos pelo ocidente, já se firmavam vagas idéias e diversas concepções sobre o significado do justo. Desde a Grécia anterior ao século VI a.C., durante o denominado período cosmológico, já se admitia uma justiça natural, emanada da ordem cósmica, marcando a indissociabilidade entre natureza, justiça e direito. Neste momento, inúmeros pensadores se propuseram a formular os princípios mais remotos de justiça, com base em diversos fundamentos, tais como: a necessidade humana (Homero); o valor supremo da comunidade e protetora do trabalho humano (Hesíodo); a igualdade (Sólon); a segurança (Píndaro); a idéia de retribuição (Ésquilo); o valor perene da lei natural (Sófocles);  a eficácia da norma (Heródoto); e a identificação com a legalidade (Eurípedes).

Com o advento da filosofia, os primeiros filósofos, conhecidos como pré-socráticos, priorizavam a busca da origem do universo e o exame das causas das transformações da natureza, revelando uma inequívoca preocupação cosmológica, que norteou os estudos das suas diferentes vertentes de pensamento, como se depreende das obras de Tales de Mileto, Pitágoras de Samos, Parmênides de Eléia e Demócrito.

Em seguida, com o desenvolvimento assistemático da ciência e da política, as conclusões obtidas revelaram uma grande diversidade e um patente antagonismo, suscitando sérias dúvidas em relação à existência da verdade. É nesse contexto que se desenvolve, na Grécia antiga, o pensamento sofístico, que reúne expoente Protágoras, Górgias, Hípias, Trasímaco, Pródico, Evêmero, Licofron, Polo, Crítias, Tucídides, Alcidamas, Cármides, Antifronte e Cálicles.

Conforme o magistério de Machado Neto (1957: pp. 14-18), os sofistas dedicavam-se ao conhecimento da retórica, o qual passou a ser mercantilizado, especialmente para as famílias nobres e abastadas. Como professores itinerantes, cobravam os sofistas pelo ensino ministrado, o que lhes rendeu críticas contundentes, desferidas por Sócrates e Platão. Os temas abordados pelos sofistas estavam intimamente ligados à política e à democracia grega, envolvendo o debate sobre o direito, a justiça, a eqüidade e a moral. Para os sofistas, não importava a verdade intrínseca da tese propugnada, mas, ao revés, o próprio processo de convencimento, ainda que a proposição fosse errônea. A verdade figurava como um dado relativo, dependendo, portanto, da capacidade de persuasão do orador.

Neste sentido, os sofistas se apresentavam como a maior expressão do relativismo filosófico,  porque não acreditavam na capacidade humana de conhecer as coisas,  ao duvidar da potencialidade cognitiva do ser humano e sustentar que ele não estava apto a alcançar a verdade.  Essa crise da razão humana descambou para a crise social, pois, se o ser humano não poderia alcançar a verdade, as instituições político-jurídicas da pólis grega  não poderiam alcançar a verdade e, portanto, a justiça plena, lançando-se as sementes do jusnaturalismo. Sendo assim, ao valorizar o poder do discurso, a retórica sofística desemboca na relativização da justiça, situando-a no plano do provável, do possível ou do convencional.

Posteriormente, como leciona Machado Neto (1987, pp. 339-342), o desenvolvimento do pensamento jusnaturalista se processa ao lume das decisivas contribuições do humanismo socrático, do idealismo platônico e do realismo aristotélico, os quais correspondem ao período ático da filosófica grega, considerado como a idade de ouro da cultura humana.

O estudo do pensamento socrático é realizado, sobretudo, em face de sua oposição ao movimento dos sofistas. Enquanto Sócrates sustentava a obediência às leis e praticava seus ensinamentos de forma gratuita, os sofistas, por outro lado, ensinavam o desprezo às leis e cobravam pelas suas exposições. Sendo assim, Sócrates entendia que o ceticismo sofista era temerário, visto que não permitia a correta orientação acerca do sentido da ética e do bem. A expressão "conhece-te a ti mesmo”, gravada no fronte do templo do Oráculo de Delfos, desponta como a palavra-chave para a compreensão do humanismo socrático. Para tanto, servia-se da maiêutica, como método de questionamento Ao mesmo tempo que convida o interlocutor a tomar consciência de seu próprio pensamento, Sócrates fá-lo compreender que, na verdade, ignora o que acreditava saber. Tal é a ironia que significa a arte de interrogar. Sócrates faz perguntas e sempre dá a impressão de buscar uma lição no interlocutor. As indagações formuladas por Sócrates levam o interlocutor a descobrir as contradições de seus pensamentos e a profundidade de sua ignorância. Neste sentido, Sócrates não acreditava ser possível ao indivíduo conhecer a realidade objetiva se desconhecesse a si mesmo, pelo que a formação ética demandaria a busca pelo conhecimento e pela felicidade. Enquanto os sofistas sustentaram a efemeridade e a contingência das leis variáveis no tempo e no espaço, Sócrates empenhou-se em restabelecer para a cidade o império do ideal cívico, liame indissociável entre indivíduo e sociedade. Sendo assim, onde estivesse a virtude, estaria a justiça e, pois, a felicidade, independente dos julgamentos humanos.

Na evolução do pensamento filosófico, adquire relevo o idealismo platônico. Platão foi o mais fervoroso discípulo de Sócrates e responsável pela criação de doutrina ou teoria das Idéias. Segundo o idealismo platônico, o mundo sensível não passaria de um conjunto de meras sombras das verdades perfeitas e imutáveis, presentes no mundo metafísico e transcendental das Idéias. Para ele, a justiça ideal expressa a hierarquia harmônica das três partes da alma - a sensibilidade, a vontade e o espírito. Ela também se encontra em cada uma das virtudes particulares: a temperança nada mais é que uma sensibilidade regulamentada segundo a justiça; a coragem é a justiça da vontade; e a sabedoria é a justiça do espírito. De outro lado, a justiça política revela uma harmonia semelhante à justiça do indivíduo. A política de Platão divisa a seguinte estratificação social: os artesãos, dos quais a justiça exige a temperança; os militares, dos quais a Justiça reclama a coragem; os chefes, dos quais a Justiça demanda sabedoria. Sendo assim, desponta a justiça como a imperativa adequação da conduta humana à ordem ideal do cosmos, constituindo ela a lei suprema da sociedade organizada como Estado.



Ricardo Maurício Freire Soares
Doutorando em Direito Público e Mestre em Direito (UFBA). Professor das Faculdades de Direito da UNIFACS e da UFBA. Membro do Instituto dos Advogados Brasileiros. E-mail: ric.mauricio@ig.com.br.

Sumário: 1. Caracteres do jusnaturalismo. 2. Jusnaturalismo cosmológico. 3. Jusnaturalismo teológico. 4. Jusnaturalismo racionalista. 5. Jusnaturalismo contemporâneo. 6. Críticas ao jusnaturalismo.  Considerações finais. Referências

1. CARACTERES DO JUSNATURALISMO

O jusnaturalismo se afigura como uma corrente jurisfilosófica de fundamentação do direito justo que remonta às representações primitivas da ordem legal de origem divina, passando pelos sofistas, estóicos, padres da igreja, escolásticos, racionalistas dos séculos XVII e XVIII, até a filosofia do direito natural do século XX.

Com base no magistério de Norberto Bobbio (1999, pp. 22-23), podem ser vislumbradas duas teses básicas do movimento jusnaturalista. A primeira tese é a pressuposição de duas instâncias jurídicas: o direito positivo e o direito natural. O direito positivo corresponderia ao fenômeno jurídico concreto, apreendido através dos órgãos sensoriais, sendo, deste modo, o fenômeno jurídico empiricamente verificável,  tal como ele se expressa através das fontes de direito, especialmente, aquelas de origem estatal. Por sua vez, o direito natural corresponderia a uma exigência perene, eterna ou imutável de um direito justo, representada por um valor transcendental ou metafísico de justiça. A segunda tese do jusnaturalismo é a superioridade do direito natural em face do direito positivo.  Neste sentido, o direito positivo deveria,  conforme a doutrina jusnaturalista,  adequar-se aos parâmetros imutáveis e eternos de justiça. O direito natural enquanto representativo da justiça serviria como referencial valorativo (o direito positivo deve ser justo) e ontológico (o direito positivo injusto deixa de apresentar juridicidade), sob pena da ordem jurídica  identificar-se com a força ou o mero arbítrio. Neste sentido, o direito vale caso seja justo e, pois, legítimo, daí resultando a subordinação da validade à legitimidade da ordem jurídica.   

Embora se oriente pela busca de  uma justiça eterna e imutável, a doutrina do direito natural ofereceu, paradoxalmente, diversos fundamentos para a compreensão de um direito justo ao longo da história ocidente. Diante disto, o jusnaturalismo pode ser agrupado nas seguintes categorias: a) O jusnaturalismo cosmológico, vigente na antigüidade clássica; b) o jusnaturalismo teológico, surgido na Idade Média, tendo como fundamentojurídico a idéia da divindade  como um ser onipotente, onisciente e onipresente; c) o jusnaturalismo racionalista, surgido no seio das revoluções liberais burgueses do século XVII e XVIII, tendo como fundamento a razão humana universal; d) o jusnaturalismo contemporâneo, gestado no século XX , que enraiza a justiça no plano histórico e social,  atentando para as diversas acepções culturais acerca do direito justo.

2. JUSNATURALISMO COSMOLÓGICO

O jusnaturalismo cosmológico foi a doutrina do direito natural que caracterizou a antigüidade greco-latina, fundado na idéia de que os direitos naturais corresponderiam à dinâmica do próprio universo, refletindo as leis eternas e imutáveis que regem o funcionamento do cosmos.

De acordo com Danilo Marcondes (1997, pp. 26-35), antes mesmo do surgimento da filosofia, nos moldes conhecidos pelo ocidente, já se firmavam vagas idéias e diversas concepções sobre o significado do justo. Desde a Grécia anterior ao século VI a.C., durante o denominado período cosmológico, já se admitia uma justiça natural, emanada da ordem cósmica, marcando a indissociabilidade entre natureza, justiça e direito. Neste momento, inúmeros pensadores se propuseram a formular os princípios mais remotos de justiça, com base em diversos fundamentos, tais como: a necessidade humana (Homero); o valor supremo da comunidade e protetora do trabalho humano (Hesíodo); a igualdade (Sólon); a segurança (Píndaro); a idéia de retribuição (Ésquilo); o valor perene da lei natural (Sófocles);  a eficácia da norma (Heródoto); e a identificação com a legalidade (Eurípedes).

Com o advento da filosofia, os primeiros filósofos, conhecidos como pré-socráticos, priorizavam a busca da origem do universo e o exame das causas das transformações da natureza, revelando uma inequívoca preocupação cosmológica, que norteou os estudos das suas diferentes vertentes de pensamento, como se depreende das obras de Tales de Mileto, Pitágoras de Samos, Parmênides de Eléia e Demócrito.

Em seguida, com o desenvolvimento assistemático da ciência e da política, as conclusões obtidas revelaram uma grande diversidade e um patente antagonismo, suscitando sérias dúvidas em relação à existência da verdade. É nesse contexto que se desenvolve, na Grécia antiga, o pensamento sofístico, que reúne expoente Protágoras, Górgias, Hípias, Trasímaco, Pródico, Evêmero, Licofron, Polo, Crítias, Tucídides, Alcidamas, Cármides, Antifronte e Cálicles.

Conforme o magistério de Machado Neto (1957: pp. 14-18), os sofistas dedicavam-se ao conhecimento da retórica, o qual passou a ser mercantilizado, especialmente para as famílias nobres e abastadas. Como professores itinerantes, cobravam os sofistas pelo ensino ministrado, o que lhes rendeu críticas contundentes, desferidas por Sócrates e Platão. Os temas abordados pelos sofistas estavam intimamente ligados à política e à democracia grega, envolvendo o debate sobre o direito, a justiça, a eqüidade e a moral. Para os sofistas, não importava a verdade intrínseca da tese propugnada, mas, ao revés, o próprio processo de convencimento, ainda que a proposição fosse errônea. A verdade figurava como um dado relativo, dependendo, portanto, da capacidade de persuasão do orador.

Neste sentido, os sofistas se apresentavam como a maior expressão do relativismo filosófico,  porque não acreditavam na capacidade humana de conhecer as coisas,  ao duvidar da potencialidade cognitiva do ser humano e sustentar que ele não estava apto a alcançar a verdade.  Essa crise da razão humana descambou para a crise social, pois, se o ser humano não poderia alcançar a verdade, as instituições político-jurídicas da pólis grega  não poderiam alcançar a verdade e, portanto, a justiça plena, lançando-se as sementes do jusnaturalismo. Sendo assim, ao valorizar o poder do discurso, a retórica sofística desemboca na relativização da justiça, situando-a no plano do provável, do possível ou do convencional.

Posteriormente, como leciona Machado Neto (1987, pp. 339-342), o desenvolvimento do pensamento jusnaturalista se processa ao lume das decisivas contribuições do humanismo socrático, do idealismo platônico e do realismo aristotélico, os quais correspondem ao período ático da filosófica grega, considerado como a idade de ouro da cultura humana.

O estudo do pensamento socrático é realizado, sobretudo, em face de sua oposição ao movimento dos sofistas. Enquanto Sócrates sustentava a obediência às leis e praticava seus ensinamentos de forma gratuita, os sofistas, por outro lado, ensinavam o desprezo às leis e cobravam pelas suas exposições. Sendo assim, Sócrates entendia que o ceticismo sofista era temerário, visto que não permitia a correta orientação acerca do sentido da ética e do bem. A expressão "conhece-te a ti mesmo”, gravada no fronte do templo do Oráculo de Delfos, desponta como a palavra-chave para a compreensão do humanismo socrático. Para tanto, servia-se da maiêutica, como método de questionamento Ao mesmo tempo que convida o interlocutor a tomar consciência de seu próprio pensamento, Sócrates fá-lo compreender que, na verdade, ignora o que acreditava saber. Tal é a ironia que significa a arte de interrogar. Sócrates faz perguntas e sempre dá a impressão de buscar uma lição no interlocutor. As indagações formuladas por Sócrates levam o interlocutor a descobrir as contradições de seus pensamentos e a profundidade de sua ignorância. Neste sentido, Sócrates não acreditava ser possível ao indivíduo conhecer a realidade objetiva se desconhecesse a si mesmo, pelo que a formação ética demandaria a busca pelo conhecimento e pela felicidade. Enquanto os sofistas sustentaram a efemeridade e a contingência das leis variáveis no tempo e no espaço, Sócrates empenhou-se em restabelecer para a cidade o império do ideal cívico, liame indissociável entre indivíduo e sociedade. Sendo assim, onde estivesse a virtude, estaria a justiça e, pois, a felicidade, independente dos julgamentos humanos.

Na evolução do pensamento filosófico, adquire relevo o idealismo platônico. Platão foi o mais fervoroso discípulo de Sócrates e responsável pela criação de doutrina ou teoria das Idéias. Segundo o idealismo platônico, o mundo sensível não passaria de um conjunto de meras sombras das verdades perfeitas e imutáveis, presentes no mundo metafísico e transcendental das Idéias. Para ele, a justiça ideal expressa a hierarquia harmônica das três partes da alma - a sensibilidade, a vontade e o espírito. Ela também se encontra em cada uma das virtudes particulares: a temperança nada mais é que uma sensibilidade regulamentada segundo a justiça; a coragem é a justiça da vontade; e a sabedoria é a justiça do espírito. De outro lado, a justiça política revela uma harmonia semelhante à justiça do indivíduo. A política de Platão divisa a seguinte estratificação social: os artesãos, dos quais a justiça exige a temperança; os militares, dos quais a Justiça reclama a coragem; os chefes, dos quais a Justiça demanda sabedoria. Sendo assim, desponta a justiça como a imperativa adequação da conduta humana à ordem ideal do cosmos, constituindo ela a lei suprema da sociedade organizada como Estado.

A grande tríade filosófica grega se completa com o pensamento aristotélico. A subordinação da idéia de justiça a uma prévia visão do universo e da vida pode ser também encontrada nos ensinamentos de Aristóteles, a quem coube estabelecer parâmetros ainda hoje utilizados para a compreensão do problema da justiça. Embora fosse discípulo de Platão, o mundo platônico do conhecimento sensível e das idéias puras foi rejeitado por Aristóteles, visto que, segundo ele, as idéias seriam imanentes às coisas, como essências conformadoras da matéria, pelo que somente por abstração a matéria existiria desprovida de forma.  Para ele, a justiça é inseparável da pólis e, portanto, da vida em comunidade. Sendo o homem um animal político, defluiria sua necessidade natural de convivência e de promoção do bem comum. A pólis grega figura, pois, como uma necessidade humana, cuidando da existência humana, assim como o organismo precisa cuidar de suas partes vitais. Na visão aristotélica, estas premissas fundamentam a necessidade de regulação da vida social através da lei, respeitando os critérios da justiça. Apresenta-se a justiça como uma virtude, adquirida pelo hábito, com a reiteração de ações num determinado sentido. Trata-se da busca pelo justo meio, contraposto ao vício da injustiça, por excesso ou por defeito.  

A classificação aristotélica segue o princípio lógico de estabelecer as características ou propriedades do geral, para depois analisar os casos particulares. Distingue, inicialmente,  dois tipos de justo político: o justo natural e o justo legal. O justo natural expressa uma justiça objetiva imutável e que não sofre a interferência humana. Já o justo legal é a lei positiva que tem sua origem na vontade do legislador e que sofre a variação espaço-temporal. Existem, ainda, a justiça geral e a justiça particular. De um lado, a justiça geral figura como a virtude da observância da lei, o respeito à legislação ou às normas convencionais instituídas pela pólis. Tem como objetivo o bem comum, a felicidade individual e coletiva. A justiça geral corresponde pelo que se entende por justiça legal. Por outro lado, a justiça particular tem por objetivo realizar a igualdade entre o sujeito que age e o sujeito que sofre a ação. Refere-se ao outro singularmente, no tratamento entre as partes.  A seu turno, a justiça particular divide-se em justiça distributiva e justiça corretiva. A justiça distributiva consiste na distribuição ou repartição de bens, honrarias, cargos, deveres, responsabilidades e honrarias, segundo os méritos de cada um, configurando uma igualdade geométrica ou proporcional. Por sua vez, a justiça corretiva visa ao restabelecimento do equilíbrio rompido entre os indivíduos, que podem ocorrer de modo voluntário, a exemplo dos acordos e contratos, ou de modo involuntário, como nos delitos em geral. Busca-se uma igualdade aritmética. Nesta forma de justiça, surge a necessidade de intervenção de uma terceira pessoa, que deve decidir sobre as relações mútuas e o eventual descumprimento de acordos humanos.

No período pós-socrático, a filosofia grega passa a ser dominada pela preocupação humanística centralizada no problema ético-moral. As magnas-questões metafísicas são agora ultrapassadas pela preocupação com a felicidade do homem. Despontam, assim, as correntes do epicurismo e do estoicismo.

Para o epicurismo, o critério único da verdade do conhecimento radicaria na sensação ou na percepção imediata evidente. Neste sentido, o critério supremo da ética seria a evidência do prazer e o da moralidade, o sentimento. Assim, a moral tem por objeto a felicidade humana, a qual não se confunde com o gozo grosseiro dos sentidos. O prazer epicurista é a ausência de dor. No contexto da moral epicurista, a virtude não é um fim, mas o meio de o atingir, pois o fim é o prazer tranqüilo. A justiça, enquanto virtude, participa desse mesmo caráter. Assim, ela é instrumento e não a medida do que deve caber a cada um, porém o meio de evitar a dor, jamais prejudicando a quem quer que seja. A justiça consiste em conservar-se longe da possibilidade de causar dano a outrem ou sofrê-lo. O meio técnico de tornar efetiva essa moral do prazer tranqüilo consiste no direito justo, cujo escopo é prescrever as ações que propiciem a felicidade ao maior número de pessoas, e vedar, em contrapartida, as ações prejudiciais.

Por sua vez, segundo o estoicismo, o único bem do homem é a virtude, concebida como fim e não como meio, sendo o vício o único mal. Ambos são absolutos, isto é, não admitem graduações intermediárias. A posse de uma virtude implica a de todos e constitui a sabedoria; e a prática de um vício torna o seu autor réu de todos. O homem deve dominar as paixões, sobrepondo a elas a razão e, assim, alcançar a impassibilidade absoluta, a apatia. A concepção jusnaturalista que se construiu na doutrina estóica retoma a noção do logos. A razão universal que rege todos as coisas está presente em cada homem, sem distinções; enquanto parte da natureza cósmica, o homem é racional, donde se infere a existência de um direito natural universalmente válido e baseado na razão, o qual não se confunde com o direito posto pelo Estado. Deste modo, o fundamento da ética e de todo o conceito de justiça reside na ordenação cósmico-natural. A ética estóica caminha no sentido de postular a independência do homem com relação a tudo que cerca (ataraxia), mas ao mesmo tempo, no sentido de afirmar seu profundo atrelamento com causas e regularidades universais.

Como bem observa Miguel Reale (1994, pp. 627-630), do ponto de vista da Filosofia do Direito, o pensamento pós-socrático acaba por fundamentar uma concepção mais cosmopolita do homem, adaptada à nova realidade do Estado-Império, cristalizando a idéia do direito natural que irá impregnar a Roma antiga. A jurisprudência romana se desenvolve, então, sob a égide da doutrina do direito natural, na esteira das concepções herdadas do pensamento clássico. Em Roma, as idéias mais ou menos difusas na moral estóica, de que os postulados da razão teriam força e alcance universais, encontraram ambiência favorável à sua aplicação prática. O direito natural passa a ser  então, concebido como a própria natureza baseada na razão, traduzida em princípios de valor universal.

Decerto, os grandes jurisconsultos romanos, especialmente Cícero, eram orientados pelo estoicismo, pelo que o humanismo estóico passou a conceber o dever e a determinar a escolha da atitude racionalmente mais aceitável para a edificação de uma ordem justa. Para Cícero, existiria uma verdadeira lei: a reta razão conforme a natureza, difusa em todos e sempre eterna. Nesta definição o jurisconsulto identifica a razão com a lei natural, centralizando as tendências estóicas à fundamentação racional de uma visão cosmopolita do direito e da justiça, inaugurando um direito natural racionalista, oposto à fundamentação metafísica da antiga tradição pré-socrática. Essa lei, consubstanciada na razão, fundamentava não só o jus naturale, como também o jus civile e o jus gentium, não havendo, portanto, oposição entre as três expressões do direito, pois cada uma delas corresponderia a determinações graduais do mesmo princípio universal. O que os romanos, notadamente com Cícero, nos dão de novo é a idéia de ratio naturalis, isto é, a conexão íntima entre a natureza e a razão, o que não é de se estranhar em se tratando de um povo que foi, sem dúvida, o fundador do direito como ciência autônoma.

3. JUSNATURALISMO TEOLÓGICO

Segundo Paulo Nader (2000, p.117-127), o jusnaturalismo teológico se consolida enquanto doutrina jusfilosófica na Idade Média, sob a decisiva influência do cristianismo. A doutrina cristã veio introduzir novas dimensões ao problema da justiça. Tratando-se de uma concepção religiosa de justiça, deve se dizer que a justiça humana é identificada como uma justiça transitória e sujeita ao poder temporal. Para o cristianismo, não é nela que reside necessariamente a verdade, mas na lei de Deus, que age de modo absoluto, eterno e imutável. Ocorreu, assim,  uma verdadeira revolução da subjetividade, prevalecendo a atitude ou disposição de ser justo sobre a aspiração de ter uma idéia precisa de justiça. Continua esta, porém, a ser vista em um quadro superior de idéias, já agora subordinado a uma visão teológica, a partir do princípio de um Deus criador, do qual emana a harmonia do universo.

Na idade média, o jusnaturalismo apresentava um conteúdo teológico, pois os fundamentos do direito natural eram a inteligência e a vontade divina, pela vigência do credo religioso e o predomínio da fé. Os princípios imutáveis e universais do direito natural podiam ser sintetizados na fórmula segundo a qual o bem deve ser feito, daí advindo os deveres dos homens para consigo mesmos, para com os outros homens e para com Deus. As demais normas, construídas pelos legisladores, seriam aplicações destes princípios às contingências da vida, v.g, do princípio jusnatural de que o homem não deve lesar o próximo, decorreria a norma positivada que veda os atos ilícitos. Segundo o jusnaturalismo teológico, o fundamento dos direitos naturais seria a vontade de Deus: o direito positivo deveria estar em consonância com as exigências perenes e imutáveis da divindade.

Podem ser identificados dois grandes movimentos partidários do jusnaturalismo teológico: a patrística e a escolástica.

A patrística é o nome que se utiliza para designar o pensamento filosófico desenvolvido pelos Padres da Igreja Católica ou Santos Padres entre os séculos II e VI. Através de suas especulações filosóficas, procuraram explicar os dogmas da religião católica. Percebe-se, na patrística, que a filosofia apresenta-se como alicerce da teologia. Entre os Santos Padres, destacam-se Tertuliano, Latâncio, Santo Ambrósio, São João Crisóstomo e, principalmente, Santo Agostinho.

Santo Agostinho, indubitavelmente,  é o maior expoente da patrística e um dos mais célebres pensadores de todas as épocas. As contribuições e formulações filosóficas agostinianas são vastas e relevantes. Inicialmente, trata de dois conceitos de Estado: o conceito helênico pagão que corresponde à civitas terrena, e o conceito cristão que corresponde à civitas caelestis. A primeira povoada por homens vivendo no mundo (Estado Pagão), a segunda composta por almas libertas do pecado e próximas de Deus. O homem deve procurar o estabelecimento da cidade celeste (submissão do Estado à Igreja). A respeito da doutrina geral da lei, difere a lex aeterna da lex naturalis. Deus é o autor da lei eterna, enquanto a lei natural é a manifestação daquela no coração do homem. Portanto, a lei natural é a lei eterna transcrita na alma do homem, em razão do seu coração, também chamada lei íntima. A lei humana deve derivar da lei natural, do contrário não será autêntica. Preceito humano injusto não é a lei. O legislador deve procurar não só restringir tudo que perturbe a ordem das coisas, como também ordenar o que favoreça esta ordem. A lei humana tem por fim o governo dos homens, manter a paz entre eles. Enquanto a lei eterna e a natural se referem ao campo da moralidade. No que se refere à justiça, Santo Agostinho compartilha da definição de Cícero, segundo a qual a justiça é a tendência da alma de dar a cada um o que é seu.

Por sua vez, a escolástica tem seu início marcado pela anexação de Grécia e Roma por Carlos Magno ao Império Franco. Nessa época, a característica denunciante da genialidade dos homens transparecia pelo equilíbrio entre a razão e a fé, o qual fora alcançado por Santo Tomás de Aquino ao demonstrar que fé e razão são diferentes caminhos que levam ao verdadeiro conhecimento. Por seus grandes trabalhos intelectuais, o Doutor Angélico foi considerado o maior pensador da doutrina escolástica.

Na Suma Teológica, ao tratar da justiça, Tomás de Aquino afirma que a mesma pode ser vista como uma virtude geral, uma vez que, tendo por objeto o bem comum, ordena a este os atos das outras virtudes. Como cabe à lei ordenar para o bem comum, tal justiça é chamada de justiça legal.  Por meio dela, o homem se harmoniza com a lei que ordena os atos de todas as virtudes para o bem comum. Ademais, Santo Tomás de Aquino admite uma diversidade de leis: a lei divina revelada ao homem, a lei humana, a lei eterna e a lei natural, contudo, não as considera como compartimentos estanques. A lei eterna é a razão oriunda do divino que coordena todo o universo, incluindo o homem. A natural, o reflexo da lei divina existente no homem. Afirma ele a necessidade da complementação desta pelas leis divina e humana, a fim de se conseguir a certeza jurídica e a paz social, bem como facilitar a interpretação dos julggadores.

4. JUSNATURALISMO RACIONALISTA

Quando o homem do renascimento produziu uma inversão antropocêntrica na compreensão do mundo, vendo-o a partir de si mesmo, e não mais a partir de Deus, o tratamento do problema da justiça sofreu uma marcante inflexão. A concepção do jusnaturalismo teológico foi, gradativamente, substituída, a partir do século XVII, em face do processo de secularização da vida social, por uma doutrina jusnaturalista subjetiva e racional, buscando seus fundamentos na identidade de uma razão humana universal. O jusnaturalismo racionalista consolida-se com o advento da ilustração, despontando a razão humana como um código de ética universal e pressupondo um ser humano único em todo o tempo e em todo espaço. Os iluministas acreditavam, assim, que a racionalidade humana, diferentemente da providência divina, poderia ordenar a natureza e vida social. Este movimento jusnaturalista, de base antropocêntrica, utilizou a idéia de uma razão humana universal para afirmar direitos naturais ou inatos, titularizados por todo e qualquer indivíduo, cuja observância obrigatória poderia ser imposta até mesmo ao Estado, sob pena do direito positivo corporificar a injustiça. 

Refere Maria Helena Diniz (2005, pp. 38-43) que, no âmbito da presente concepção jusnaturalista, a natureza do ser humano foi concebida de diversas formas: genuinamente social; originariamente individualista; ou decorrente de uma racionalidade prática e inata.  Na visão de pensadores como Grotius, Pufendorf e Locke, a natureza humana seria genuinamente social. Sob a perspectiva de pensadores como Hobbes e Rousseau, a natureza humana é vislumbrada como originariamente a-social ou individualista.

É, entretanto, com a obra de Kant que a proposta de racionalização do jusnaturalismo atinge um maior grau de profundidade e sofisticação intelectual. O criticismo transcendental de Emmanuel Kant procura conciliar o empirismo e o idealismo, redundando num racionalismo que reorienta os rumos da filosofia moderna e contemporânea. Para ele, o conhecimento só é possível a partir da interação a experiência e as condições formais da razão. Promove uma verdadeira revolução copernicana na teoria do conhecimento, ao valorizar a figura do sujeito cognoscente, o que nos ajuda a compreender sua discussão ética. Kant preocupa-se em fundamentar a prática moral não na pura experiência, mas em uma lei inerente à racionalidade universal humana, o chamado imperativo categórico – age só, segundo uma máxima tal, que possas querer, ao mesmo tempo, que se torne uma máxima universal. Aqui a razão prática é legisladora de si, definindo os limites da ação e da conduta humana. O imperativo categórico é único, absoluto e não deriva da experiência. A ética é, portanto, o compromisso de seguir o próprio preceito ético fundamental, e pelo fato de segui-lo em si e por si. O homem que age moralmente deverá fazê-lo, não porque visa à realização de qualquer outro algo, mas pelo simples fato de colocar-se de acordo com a máxima do imperativo categórico. O agir livre é o agir moral. O agir moral é o agir de acordo com o dever. O agir de acordo com o dever é fazer de sua lei subjetiva um princípio de legislação universal, a ser inscrita em toda a natureza.

Sendo assim, revela-se a preocupação kantiana de superar o plano empírico no qual se defrontavam tais contrastes, a fim de atingir uma regra de justiça de validade universal. Algo de novo surgia, com Kant, na dramaturgia da justiça, alçando-se ele ao plano transcendental, no qual a justiça se impõe como um imperativo da razão, segundo duas regras que se complementam: age de modo a tratar a humanidade, na sua como na pessoa de outrem, sempre como fim, jamais como simples meio, bem como age segundo uma máxima que possa valer ao mesmo tempo como lei de sentido universal. Somente assim, a seu ver, poderá haver um acordo universal de liberdade, base de uma comunidade universal. Não cuida Kant de definir a justiça, ao contrário do que faz com o direito, preferindo inseri-la no sistema de sua visão transcendental da vida ética, o que vem, mais uma vez, confirmar a tese de que a justiça somente pode ser compreendida em uma visão abrangente de valor universal.

Deste modo, com o jusnaturalismo racionalista moderno, o conhecimento jurídico passa a ser um construído sistemático da razão, conforme o rigor lógico da dedução, e um instrumento de crítica da realidade, ao permitir a avaliação crítica do direito posto em nome de padrões éticos contidos em princípios reconhecidos pela razão humana.

 5. JUSNATURALISMO CONTEMPORÂNEO

O século XX é dominado pelo positivismo científico, ao priorizar um tratamento empírico dos fenômenos estudados, não havendo espaço para as especulações abstratas e metafísicas do direito natural.  Se  a ciência positivista é convertida na única via válida para a obtenção da verdade,  o debate acerca do sentido de um direito justo se torna acessório e irrelevante.  Além disso, foi também no século XIX que surgiram as ciências sociais como a Sociologia, Antropologia e a Etnologia, que passaram a apontar a diversidade cultural das sociedades humanas.  Diante disso, essas ciências sociais passariam a evidenciar que a concepção de justiça seria variável no tempo e no espaço, ao contrário do conceito eterno e perene da justiça difundido pelos jusnaturalistas.

Refere Paulo Dourado de Gusmão (1985, pp.30-32) que, se o jusnaturalismo sofreu um refluxo no século XIX, ocorreu o seu retorno durante o século vinte, sob o influxo das contribuições do historicismo e sociologismo jurídico, antigos antagonistas do próprio jusnaturalismo. Acrescente-se a este impulso, a renovação do debate sobre a justiça, após a segunda guerra mundial, com destaque para as obras de Rudolf Stammler e Giorgio Del Vecchio. O primeiro propõe um jusnaturalismo de conteúdo variável, rejeitando o direito natural material baseado na natureza humana. Enaltece, em verdade, o método formal para sistematizar uma dada matéria social, em cada momento histórico, no sentido de um direito justo. O segundo confere ao jusnaturalismo uma nova base idealista depurada, procurando tornar compatíveis os vários materiais histórico-condicionados com a pureza formal do ideal do justo, permanente e imutável.

Neste sentido, o jusnaturalismo contemporâneo incorpora as críticas feitas a ele próprio no século XIX, ao reconhecer a relatividade do conceito de justiça e sustentar que cada cultura valora a justiça de uma determinada forma. Sendo assim, repele-se a idéia de uma justiça perene e imutável, apresentando, em contrapartida, uma visão relativista quanto as possibilidades de configuração de um direito justo. Trata-se da constatação de que, em qualquer sociedade humana, haverá uma forma de vivenciar o direito justo, visto que a justiça se revela um anseio fundamental da espécie humana. O conteúdo do que seja o direito justo variará, contudo, no tempo e no espaço, ao sabor das exigências valorativas de cada cultura.      

6. CRÍTICAS AO JUSNATURALISMO
Do ponto de vista jurisfilosófico, a doutrina jusnaturalista desempenhou a função relevante de sinalizar a necessidade de um tratamento axiológico para o direito. Isto porque o jusnaturalismo permite uma tematização dos valores jurídicos, abrindo espaço para a discussão sobre a justiça e sobre os critérios de edificação de um direito justo.

Entretanto, como salienta Auto de Castro (1954, p.28), em face da necessidade de delimitar o que seja o direito justo, a doutrina jusnaturalista não logra oferecer uma proposta satisfatória de compreensão dos liames mantidos entre direito, legitimidade e justiça. Ao encerrar o jusnaturalismo todos os postulados metafísicos,  resta demonstrado que a epistemologia jurídica, em consonância com os resultados da teoria do conhecimento, não reconhece os títulos de legitimidade da doutrina do direito natural.

Eis os motivos: a) o jusnaturalismo confunde os planos do ser e do dever-ser, porque, para a grande maioria dos jusnaturalistas, o direito injusto seria descaracterizado como fenômeno jurídico.  Para que um fenômeno ético merecesse a nomenclatura direito deveria estar em consonância com a  justiça, sob pena de configurar a imposição o arbítrio ou da força por um poder constituído; b) os jusnaturalistas não visualizam a bipolaridade axiológica: todo valor é correlato a um desvalor. Os valores humanos estão estruturados em binômios, tais como: justo x injusto,  útil x inútil, sagrado x profano ou belo x feio. Isto, portanto, não autoriza a assertiva de que o direito injusto não é direito, pois os juízos de fato e de valor se situam em planos distintos de apreensão cognitiva; c) a compreensão da justiça como uma estimativa a-histórica,  a-temporal e a-espacial, em que pese a crítica do jusnaturalismo contemporâneo, merece sérias objeções. O justo não pode ser concebido como um valor ideal e absoluto, envolto em nuvens metafísicas, visto que a axiologia jurídica contemporânea já demonstrou como o direito é um objeto cultural e como a justiça figura como um valor histórico-social,  enraizado no valor da cultura humana.  O conceito de justiça é, pois, sempre relativo, condicionado ao tempo e ao espaço; o jusnaturalismo acaba por identificar os atributos normativos da validade e legitimidade, ao afirmar que a norma jurídica vale se for justa, o que compromete as exigências de ordem e segurança jurídica, que se traduzem no respeito à legalidade dos Estados Democráticos de Direito.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Em face de todo o exposto, pode-se sintetizar que: a) o jusnaturalismo oferece, tradicionalmente, o direito natural como a fórmula perene, absoluta e imutável de justiça, que orienta a busca pela legitimidade do direito justo; b) a corrente jusnaturalista, ao longo de sua evolução doutrinária, identifica o direito justo com diversos elementos: o cosmos (jusnaturalismo cosmológico), a vontade divina (jusnaturalismo teológico), a razão humana universal (jusnaturalismo racionalista) ou mesmo a expressão de uma dada cultura humana (jusnaturalismo contemporâneo); c) a doutrina do direito natural não fornece, entretanto, uma proposta satisfatória de compreensão dos liames mantidos entre direito, legitimidade e justiça, visto que o jusnaturalismo confunde os planos do ser e do dever-ser, não admite o relativismo histórico-cultural do direito justo, bem como identifica os atributos normativos da validade e legitimidade, comprometendo as exigências basilares dos Estados Democráticos de Direito, tais como a ordem, a segurança jurídica e o respeito à legalidade.

REFERÊNCIAS

BOBBIO, Norberto. O positivismo jurídico: lições de filosofia do direito. São Paulo: Ícone, 1999.
CASTRO, Auto de. A ideologia jusnaturalista: dos estóicos à O.N.U. Salvador: S. A. Artes Gráficas, 1954.
GUSMÃO, Paulo Dourado de. Filosofia do Direito. Rio de Janeiro: Forense, 1985.
MACHADO NETO, Antônio Luís. Sociologia do direito natural. Salvador: Progresso, 1957.
______. Sociología jurídica. São Paulo: Saraiva, 1987.
MARCONDES, Danilo. Iniciação à história da filosofia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1997.
NADER. Paulo. Filosofia do direito. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2000.
REALE. Miguel. Teoria tridimensional do direito. São Paulo: Saraiva, 1994.
______. Filosofia do Direito. São Paulo: Saraiva, 1994.




A grande tríade filosófica grega se completa com o pensamento aristotélico. A subordinação da idéia de justiça a uma prévia visão do universo e da vida pode ser também encontrada nos ensinamentos de Aristóteles, a quem coube estabelecer parâmetros ainda hoje utilizados para a compreensão do problema da justiça. Embora fosse discípulo de Platão, o mundo platônico do conhecimento sensível e das idéias puras foi rejeitado por Aristóteles, visto que, segundo ele, as idéias seriam imanentes às coisas, como essências conformadoras da matéria, pelo que somente por abstração a matéria existiria desprovida de forma.  Para ele, a justiça é inseparável da pólis e, portanto, da vida em comunidade. Sendo o homem um animal político, defluiria sua necessidade natural de convivência e de promoção do bem comum. A pólis grega figura, pois, como uma necessidade humana, cuidando da existência humana, assim como o organismo precisa cuidar de suas partes vitais. Na visão aristotélica, estas premissas fundamentam a necessidade de regulação da vida social através da lei, respeitando os critérios da justiça. Apresenta-se a justiça como uma virtude, adquirida pelo hábito, com a reiteração de ações num determinado sentido. Trata-se da busca pelo justo meio, contraposto ao vício da injustiça, por excesso ou por defeito.  

A classificação aristotélica segue o princípio lógico de estabelecer as características ou propriedades do geral, para depois analisar os casos particulares. Distingue, inicialmente,  dois tipos de justo político: o justo natural e o justo legal. O justo natural expressa uma justiça objetiva imutável e que não sofre a interferência humana. Já o justo legal é a lei positiva que tem sua origem na vontade do legislador e que sofre a variação espaço-temporal. Existem, ainda, a justiça geral e a justiça particular. De um lado, a justiça geral figura como a virtude da observância da lei, o respeito à legislação ou às normas convencionais instituídas pela pólis. Tem como objetivo o bem comum, a felicidade individual e coletiva. A justiça geral corresponde pelo que se entende por justiça legal. Por outro lado, a justiça particular tem por objetivo realizar a igualdade entre o sujeito que age e o sujeito que sofre a ação. Refere-se ao outro singularmente, no tratamento entre as partes.  A seu turno, a justiça particular divide-se em justiça distributiva e justiça corretiva. A justiça distributiva consiste na distribuição ou repartição de bens, honrarias, cargos, deveres, responsabilidades e honrarias, segundo os méritos de cada um, configurando uma igualdade geométrica ou proporcional. Por sua vez, a justiça corretiva visa ao restabelecimento do equilíbrio rompido entre os indivíduos, que podem ocorrer de modo voluntário, a exemplo dos acordos e contratos, ou de modo involuntário, como nos delitos em geral. Busca-se uma igualdade aritmética. Nesta forma de justiça, surge a necessidade de intervenção de uma terceira pessoa, que deve decidir sobre as relações mútuas e o eventual descumprimento de acordos humanos.

No período pós-socrático, a filosofia grega passa a ser dominada pela preocupação humanística centralizada no problema ético-moral. As magnas-questões metafísicas são agora ultrapassadas pela preocupação com a felicidade do homem. Despontam, assim, as correntes do epicurismo e do estoicismo.

Para o epicurismo, o critério único da verdade do conhecimento radicaria na sensação ou na percepção imediata evidente. Neste sentido, o critério supremo da ética seria a evidência do prazer e o da moralidade, o sentimento. Assim, a moral tem por objeto a felicidade humana, a qual não se confunde com o gozo grosseiro dos sentidos. O prazer epicurista é a ausência de dor. No contexto da moral epicurista, a virtude não é um fim, mas o meio de o atingir, pois o fim é o prazer tranqüilo. A justiça, enquanto virtude, participa desse mesmo caráter. Assim, ela é instrumento e não a medida do que deve caber a cada um, porém o meio de evitar a dor, jamais prejudicando a quem quer que seja. A justiça consiste em conservar-se longe da possibilidade de causar dano a outrem ou sofrê-lo. O meio técnico de tornar efetiva essa moral do prazer tranqüilo consiste no direito justo, cujo escopo é prescrever as ações que propiciem a felicidade ao maior número de pessoas, e vedar, em contrapartida, as ações prejudiciais.

Por sua vez, segundo o estoicismo, o único bem do homem é a virtude, concebida como fim e não como meio, sendo o vício o único mal. Ambos são absolutos, isto é, não admitem graduações intermediárias. A posse de uma virtude implica a de todos e constitui a sabedoria; e a prática de um vício torna o seu autor réu de todos. O homem deve dominar as paixões, sobrepondo a elas a razão e, assim, alcançar a impassibilidade absoluta, a apatia. A concepção jusnaturalista que se construiu na doutrina estóica retoma a noção do logos. A razão universal que rege todos as coisas está presente em cada homem, sem distinções; enquanto parte da natureza cósmica, o homem é racional, donde se infere a existência de um direito natural universalmente válido e baseado na razão, o qual não se confunde com o direito posto pelo Estado. Deste modo, o fundamento da ética e de todo o conceito de justiça reside na ordenação cósmico-natural. A ética estóica caminha no sentido de postular a independência do homem com relação a tudo que cerca (ataraxia), mas ao mesmo tempo, no sentido de afirmar seu profundo atrelamento com causas e regularidades universais.


Como bem observa Miguel Reale (1994, pp. 627-630), do ponto de vista da Filosofia do Direito, o pensamento pós-socrático acaba por fundamentar uma concepção mais cosmopolita do homem, adaptada à nova realidade do Estado-Império, cristalizando a idéia do direito natural que irá impregnar a Roma antiga. A jurisprudência romana se desenvolve, então, sob a égide da doutrina do direito natural, na esteira das concepções herdadas do pensamento clássico. Em Roma, as idéias mais ou menos difusas na moral estóica, de que os postulados da razão teriam força e alcance universais, encontraram ambiência favorável à sua aplicação prática. O direito natural passa a ser  então, concebido como a própria natureza baseada na razão, traduzida em princípios de valor universal.

Decerto, os grandes jurisconsultos romanos, especialmente Cícero, eram orientados pelo estoicismo, pelo que o humanismo estóico passou a conceber o dever e a determinar a escolha da atitude racionalmente mais aceitável para a edificação de uma ordem justa. Para Cícero, existiria uma verdadeira lei: a reta razão conforme a natureza, difusa em todos e sempre eterna. Nesta definição o jurisconsulto identifica a razão com a lei natural, centralizando as tendências estóicas à fundamentação racional de uma visão cosmopolita do direito e da justiça, inaugurando um direito natural racionalista, oposto à fundamentação metafísica da antiga tradição pré-socrática. Essa lei, consubstanciada na razão, fundamentava não só o jus naturale, como também o jus civile e o jus gentium, não havendo, portanto, oposição entre as três expressões do direito, pois cada uma delas corresponderia a determinações graduais do mesmo princípio universal. O que os romanos, notadamente com Cícero, nos dão de novo é a idéia de ratio naturalis, isto é, a conexão íntima entre a natureza e a razão, o que não é de se estranhar em se tratando de um povo que foi, sem dúvida, o fundador do direito como ciência autônoma.

3. JUSNATURALISMO TEOLÓGICO

Segundo Paulo Nader (2000, p.117-127), o jusnaturalismo teológico se consolida enquanto doutrina jusfilosófica na Idade Média, sob a decisiva influência do cristianismo. A doutrina cristã veio introduzir novas dimensões ao problema da justiça. Tratando-se de uma concepção religiosa de justiça, deve se dizer que a justiça humana é identificada como uma justiça transitória e sujeita ao poder temporal. Para o cristianismo, não é nela que reside necessariamente a verdade, mas na lei de Deus, que age de modo absoluto, eterno e imutável. Ocorreu, assim,  uma verdadeira revolução da subjetividade, prevalecendo a atitude ou disposição de ser justo sobre a aspiração de ter uma idéia precisa de justiça. Continua esta, porém, a ser vista em um quadro superior de idéias, já agora subordinado a uma visão teológica, a partir do princípio de um Deus criador, do qual emana a harmonia do universo.

Na idade média, o jusnaturalismo apresentava um conteúdo teológico, pois os fundamentos do direito natural eram a inteligência e a vontade divina, pela vigência do credo religioso e o predomínio da fé. Os princípios imutáveis e universais do direito natural podiam ser sintetizados na fórmula segundo a qual o bem deve ser feito, daí advindo os deveres dos homens para consigo mesmos, para com os outros homens e para com Deus. As demais normas, construídas pelos legisladores, seriam aplicações destes princípios às contingências da vida, v.g, do princípio jusnatural de que o homem não deve lesar o próximo, decorreria a norma positivada que veda os atos ilícitos. Segundo o jusnaturalismo teológico, o fundamento dos direitos naturais seria a vontade de Deus: o direito positivo deveria estar em consonância com as exigências perenes e imutáveis da divindade.

Podem ser identificados dois grandes movimentos partidários do jusnaturalismo teológico: a patrística e a escolástica.

A patrística é o nome que se utiliza para designar o pensamento filosófico desenvolvido pelos Padres da Igreja Católica ou Santos Padres entre os séculos II e VI. Através de suas especulações filosóficas, procuraram explicar os dogmas da religião católica. Percebe-se, na patrística, que a filosofia apresenta-se como alicerce da teologia. Entre os Santos Padres, destacam-se Tertuliano, Latâncio, Santo Ambrósio, São João Crisóstomo e, principalmente, Santo Agostinho.

Santo Agostinho, indubitavelmente,  é o maior expoente da patrística e um dos mais célebres pensadores de todas as épocas. As contribuições e formulações filosóficas agostinianas são vastas e relevantes. Inicialmente, trata de dois conceitos de Estado: o conceito helênico pagão que corresponde à civitas terrena, e o conceito cristão que corresponde à civitas caelestis. A primeira povoada por homens vivendo no mundo (Estado Pagão), a segunda composta por almas libertas do pecado e próximas de Deus. O homem deve procurar o estabelecimento da cidade celeste (submissão do Estado à Igreja). A respeito da doutrina geral da lei, difere a lex aeterna da lex naturalis. Deus é o autor da lei eterna, enquanto a lei natural é a manifestação daquela no coração do homem. Portanto, a lei natural é a lei eterna transcrita na alma do homem, em razão do seu coração, também chamada lei íntima. A lei humana deve derivar da lei natural, do contrário não será autêntica. Preceito humano injusto não é a lei. O legislador deve procurar não só restringir tudo que perturbe a ordem das coisas, como também ordenar o que favoreça esta ordem. A lei humana tem por fim o governo dos homens, manter a paz entre eles. Enquanto a lei eterna e a natural se referem ao campo da moralidade. No que se refere à justiça, Santo Agostinho compartilha da definição de Cícero, segundo a qual a justiça é a tendência da alma de dar a cada um o que é seu.

Por sua vez, a escolástica tem seu início marcado pela anexação de Grécia e Roma por Carlos Magno ao Império Franco. Nessa época, a característica denunciante da genialidade dos homens transparecia pelo equilíbrio entre a razão e a fé, o qual fora alcançado por Santo Tomás de Aquino ao demonstrar que fé e razão são diferentes caminhos que levam ao verdadeiro conhecimento. Por seus grandes trabalhos intelectuais, o Doutor Angélico foi considerado o maior pensador da doutrina escolástica.

Na Suma Teológica, ao tratar da justiça, Tomás de Aquino afirma que a mesma pode ser vista como uma virtude geral, uma vez que, tendo por objeto o bem comum, ordena a este os atos das outras virtudes. Como cabe à lei ordenar para o bem comum, tal justiça é chamada de justiça legal.  Por meio dela, o homem se harmoniza com a lei que ordena os atos de todas as virtudes para o bem comum. Ademais, Santo Tomás de Aquino admite uma diversidade de leis: a lei divina revelada ao homem, a lei humana, a lei eterna e a lei natural, contudo, não as considera como compartimentos estanques. A lei eterna é a razão oriunda do divino que coordena todo o universo, incluindo o homem. A natural, o reflexo da lei divina existente no homem. Afirma ele a necessidade da complementação desta pelas leis divina e humana, a fim de se conseguir a certeza jurídica e a paz social, bem como facilitar a interpretação dos julggadores.

4. JUSNATURALISMO RACIONALISTA

Quando o homem do renascimento produziu uma inversão antropocêntrica na compreensão do mundo, vendo-o a partir de si mesmo, e não mais a partir de Deus, o tratamento do problema da justiça sofreu uma marcante inflexão. A concepção do jusnaturalismo teológico foi, gradativamente, substituída, a partir do século XVII, em face do processo de secularização da vida social, por uma doutrina jusnaturalista subjetiva e racional, buscando seus fundamentos na identidade de uma razão humana universal. O jusnaturalismo racionalista consolida-se com o advento da ilustração, despontando a razão humana como um código de ética universal e pressupondo um ser humano único em todo o tempo e em todo espaço. Os iluministas acreditavam, assim, que a racionalidade humana, diferentemente da providência divina, poderia ordenar a natureza e vida social. Este movimento jusnaturalista, de base antropocêntrica, utilizou a idéia de uma razão humana universal para afirmar direitos naturais ou inatos, titularizados por todo e qualquer indivíduo, cuja observância obrigatória poderia ser imposta até mesmo ao Estado, sob pena do direito positivo corporificar a injustiça. 

Refere Maria Helena Diniz (2005, pp. 38-43) que, no âmbito da presente concepção jusnaturalista, a natureza do ser humano foi concebida de diversas formas: genuinamente social; originariamente individualista; ou decorrente de uma racionalidade prática e inata.  Na visão de pensadores como Grotius, Pufendorf e Locke, a natureza humana seria genuinamente social. Sob a perspectiva de pensadores como Hobbes e Rousseau, a natureza humana é vislumbrada como originariamente a-social ou individualista.

É, entretanto, com a obra de Kant que a proposta de racionalização do jusnaturalismo atinge um maior grau de profundidade e sofisticação intelectual. O criticismo transcendental de Emmanuel Kant procura conciliar o empirismo e o idealismo, redundando num racionalismo que reorienta os rumos da filosofia moderna e contemporânea. Para ele, o conhecimento só é possível a partir da interação a experiência e as condições formais da razão. Promove uma verdadeira revolução copernicana na teoria do conhecimento, ao valorizar a figura do sujeito cognoscente, o que nos ajuda a compreender sua discussão ética. Kant preocupa-se em fundamentar a prática moral não na pura experiência, mas em uma lei inerente à racionalidade universal humana, o chamado imperativo categórico – age só, segundo uma máxima tal, que possas querer, ao mesmo tempo, que se torne uma máxima universal. Aqui a razão prática é legisladora de si, definindo os limites da ação e da conduta humana. O imperativo categórico é único, absoluto e não deriva da experiência. A ética é, portanto, o compromisso de seguir o próprio preceito ético fundamental, e pelo fato de segui-lo em si e por si. O homem que age moralmente deverá fazê-lo, não porque visa à realização de qualquer outro algo, mas pelo simples fato de colocar-se de acordo com a máxima do imperativo categórico. O agir livre é o agir moral. O agir moral é o agir de acordo com o dever. O agir de acordo com o dever é fazer de sua lei subjetiva um princípio de legislação universal, a ser inscrita em toda a natureza.

Sendo assim, revela-se a preocupação kantiana de superar o plano empírico no qual se defrontavam tais contrastes, a fim de atingir uma regra de justiça de validade universal. Algo de novo surgia, com Kant, na dramaturgia da justiça, alçando-se ele ao plano transcendental, no qual a justiça se impõe como um imperativo da razão, segundo duas regras que se complementam: age de modo a tratar a humanidade, na sua como na pessoa de outrem, sempre como fim, jamais como simples meio, bem como age segundo uma máxima que possa valer ao mesmo tempo como lei de sentido universal. Somente assim, a seu ver, poderá haver um acordo universal de liberdade, base de uma comunidade universal. Não cuida Kant de definir a justiça, ao contrário do que faz com o direito, preferindo inseri-la no sistema de sua visão transcendental da vida ética, o que vem, mais uma vez, confirmar a tese de que a justiça somente pode ser compreendida em uma visão abrangente de valor universal.

Deste modo, com o jusnaturalismo racionalista moderno, o conhecimento jurídico passa a ser um construído sistemático da razão, conforme o rigor lógico da dedução, e um instrumento de crítica da realidade, ao permitir a avaliação crítica do direito posto em nome de padrões éticos contidos em princípios reconhecidos pela razão humana.

 5. JUSNATURALISMO CONTEMPORÂNEO

O século XX é dominado pelo positivismo científico, ao priorizar um tratamento empírico dos fenômenos estudados, não havendo espaço para as especulações abstratas e metafísicas do direito natural.  Se  a ciência positivista é convertida na única via válida para a obtenção da verdade,  o debate acerca do sentido de um direito justo se torna acessório e irrelevante.  Além disso, foi também no século XIX que surgiram as ciências sociais como a Sociologia, Antropologia e a Etnologia, que passaram a apontar a diversidade cultural das sociedades humanas.  Diante disso, essas ciências sociais passariam a evidenciar que a concepção de justiça seria variável no tempo e no espaço, ao contrário do conceito eterno e perene da justiça difundido pelos jusnaturalistas.

Refere Paulo Dourado de Gusmão (1985, pp.30-32) que, se o jusnaturalismo sofreu um refluxo no século XIX, ocorreu o seu retorno durante o século vinte, sob o influxo das contribuições do historicismo e sociologismo jurídico, antigos antagonistas do próprio jusnaturalismo. Acrescente-se a este impulso, a renovação do debate sobre a justiça, após a segunda guerra mundial, com destaque para as obras de Rudolf Stammler e Giorgio Del Vecchio. O primeiro propõe um jusnaturalismo de conteúdo variável, rejeitando o direito natural material baseado na natureza humana. Enaltece, em verdade, o método formal para sistematizar uma dada matéria social, em cada momento histórico, no sentido de um direito justo. O segundo confere ao jusnaturalismo uma nova base idealista depurada, procurando tornar compatíveis os vários materiais histórico-condicionados com a pureza formal do ideal do justo, permanente e imutável.

Neste sentido, o jusnaturalismo contemporâneo incorpora as críticas feitas a ele próprio no século XIX, ao reconhecer a relatividade do conceito de justiça e sustentar que cada cultura valora a justiça de uma determinada forma. Sendo assim, repele-se a idéia de uma justiça perene e imutável, apresentando, em contrapartida, uma visão relativista quanto as possibilidades de configuração de um direito justo. Trata-se da constatação de que, em qualquer sociedade humana, haverá uma forma de vivenciar o direito justo, visto que a justiça se revela um anseio fundamental da espécie humana. O conteúdo do que seja o direito justo variará, contudo, no tempo e no espaço, ao sabor das exigências valorativas de cada cultura.      

6. CRÍTICAS AO JUSNATURALISMO
Do ponto de vista jurisfilosófico, a doutrina jusnaturalista desempenhou a função relevante de sinalizar a necessidade de um tratamento axiológico para o direito. Isto porque o jusnaturalismo permite uma tematização dos valores jurídicos, abrindo espaço para a discussão sobre a justiça e sobre os critérios de edificação de um direito justo.

Entretanto, como salienta Auto de Castro (1954, p.28), em face da necessidade de delimitar o que seja o direito justo, a doutrina jusnaturalista não logra oferecer uma proposta satisfatória de compreensão dos liames mantidos entre direito, legitimidade e justiça. Ao encerrar o jusnaturalismo todos os postulados metafísicos,  resta demonstrado que a epistemologia jurídica, em consonância com os resultados da teoria do conhecimento, não reconhece os títulos de legitimidade da doutrina do direito natural.

Eis os motivos: a) o jusnaturalismo confunde os planos do ser e do dever-ser, porque, para a grande maioria dos jusnaturalistas, o direito injusto seria descaracterizado como fenômeno jurídico.  Para que um fenômeno ético merecesse a nomenclatura direito deveria estar em consonância com a  justiça, sob pena de configurar a imposição o arbítrio ou da força por um poder constituído; b) os jusnaturalistas não visualizam a bipolaridade axiológica: todo valor é correlato a um desvalor. Os valores humanos estão estruturados em binômios, tais como: justo x injusto,  útil x inútil, sagrado x profano ou belo x feio. Isto, portanto, não autoriza a assertiva de que o direito injusto não é direito, pois os juízos de fato e de valor se situam em planos distintos de apreensão cognitiva; c) a compreensão da justiça como uma estimativa a-histórica,  a-temporal e a-espacial, em que pese a crítica do jusnaturalismo contemporâneo, merece sérias objeções. O justo não pode ser concebido como um valor ideal e absoluto, envolto em nuvens metafísicas, visto que a axiologia jurídica contemporânea já demonstrou como o direito é um objeto cultural e como a justiça figura como um valor histórico-social,  enraizado no valor da cultura humana.  O conceito de justiça é, pois, sempre relativo, condicionado ao tempo e ao espaço; o jusnaturalismo acaba por identificar os atributos normativos da validade e legitimidade, ao afirmar que a norma jurídica vale se for justa, o que compromete as exigências de ordem e segurança jurídica, que se traduzem no respeito à legalidade dos Estados Democráticos de Direito.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Em face de todo o exposto, pode-se sintetizar que: a) o jusnaturalismo oferece, tradicionalmente, o direito natural como a fórmula perene, absoluta e imutável de justiça, que orienta a busca pela legitimidade do direito justo; b) a corrente jusnaturalista, ao longo de sua evolução doutrinária, identifica o direito justo com diversos elementos: o cosmos (jusnaturalismo cosmológico), a vontade divina (jusnaturalismo teológico), a razão humana universal (jusnaturalismo racionalista) ou mesmo a expressão de uma dada cultura humana (jusnaturalismo contemporâneo); c) a doutrina do direito natural não fornece, entretanto, uma proposta satisfatória de compreensão dos liames mantidos entre direito, legitimidade e justiça, visto que o jusnaturalismo confunde os planos do ser e do dever-ser, não admite o relativismo histórico-cultural do direito justo, bem como identifica os atributos normativos da validade e legitimidade, comprometendo as exigências basilares dos Estados Democráticos de Direito, tais como a ordem, a segurança jurídica e o respeito à legalidade.

REFERÊNCIAS

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