O DIREITO COMO UNIVERSO HERMENÊUTICO
Ricardo
Maurício Freire Soares
Professor de Graduação e Pós-Graduação da UNIME. Mestre
em Direito - UFBA. Membro do Instituto dos Advogados Brasileiros e do Instituto
dos Advogados da Bahia.
Bordada de cigarras toma
o campo/ - Que dizes, Marco Aurélio, dessas velhas filósofas do simples?/ Pobre
é teu pensamento!/ Corre a água do rio mansamente./ - Oh, Sócrates! Que vês na
água que corre para a amarga morte?/ Que pobre e triste fé!/ Despetalam-se as
rosas sobre o lodo./ - Oh, doce João de Deus!/ Que vês nestas pétalas
graciosas?/ Pequeno é teu coração!
(Federico Garcia Lorca)
A porta da verdade
estava aberta/ Mas só deixava passar/ Meia pessoa de cada vez/ Assim não era
possível atingir toda a verdade./ Porque a meia pessoa que entrava/ Só trazia o
perfil de meia verdade/ E a segunda metade/ Voltava igualmente com meio perfil/
E os meios perfis não coincidiam./ Arrebentavam a porta, derrubavam a porta, /
chegaram ao lugar luminoso onde a verdade esplendia seus fogos./ Era dividida
em metades diferentes uma da outra. / Chegou-se a discutir qual a metade mais
bela./ Nenhuma das duas era totalmente bela e carecia optar./ Cada um optou
conforme seu capricho, sua ilusão, sua miopia. (Carlos Drummond de Andrade)
Creio no Mundo como num
malmequer, porque o vejo. Mas não penso nele. porque pensar é não
compreender... O Mundo não se fez para pensarmos nele (Pensar é estar doente
dos olhos, mas para olharmos para ele e estarmos de acordo...). Eu não tenho
filosofia: tenho sentidos... Se falo na Natureza não é porque saiba o que ela
é, mas porque a amo, e amo-a por isso, porque quem ama nunca sabe o que
ama, nem sabe porque ama, nem o que é amar... Amar é a eterna inocência, e a única inocência é não pensar... (Fernando Pessoa)
Interpretai com frescura e vivacidade – / se não tirarmos ou libertarmos o
sentido da letra,/ algo aí nos ficará oculto. (Goethe)
Resumo:
O presente trabalho se propõe a evidenciar a dimensão hermenêutica do
conhecimento jurídico. Com base nos fundamentos filosóficos, a interpretação do
direito pode ser vislumbrada como uma modalidade de compreensão, capaz de
apreender e construir os valores e finalidades da ordem jurídica.
Palavras-chave:
Interpretação – conhecimento
Abstract: The
present work considers to evidence the hermeneutic dimension of the juridique
knowledge. On the basis of the philosophical beddings, the interpretation of
the right can be glimpsed as a modality of understanding, capable to apprehend
and to construct to the standards and purposes of the juridique order.
Key-words: Interpretation – knowledge
Sumário: 1. Hermenêutica e interpretação 2. Raízes
filosóficas da hermenêutica jurídica 3. Interpretação do direito: uma atividade
de compreensão 4. Tecnologia
hermenêutica: da letra ao espírito do direito. 5. Do subjetivismo ao novo
objetivismo jurídico. 6. Considerações finais. 7. Bibliografia
1. HERMENÊUTICA E INTERPRETAÇÃO
As
raízes da palavra hermenêutica residem no verbo grego hermeneuein,
usualmente traduzido por interpretar, bem como no substantivo hermeneia,
a designar interpretação. A etimologia registra ainda que a palavra
interpretação provém do termo latino interpretare (inter-penetrare),
significando penetrar mais para dentro. Isto se deve à prática religiosa de
feiticeiros e adivinhos, os quais introduziam suas mãos nas entranhas de
animais mortos, a fim de conhecer o destino das pessoas e obter respostas para
os problemas humanos.
Estes
vocábulos remetem também à mitologia antiga, evidenciando os caracteres conferidos
ao Deus-alado Hermes. Esta figura mítica era, na visão da antigüidade
ocidental, responsável pela mediação entre os Deuses e os homens. Hermes, a
quem se atribui a descoberta da escrita, atuava como um mensageiro, unindo a
esfera divino - transcendental e a civilização humana.
Decerto, não há como negar a compatibilidade da referida
metáfora de Hermes quando constatamos o objeto mesmo das especulações
suscitadas pela hermenêutica: a interpretação. É que o intérprete, nos
variegados planos da apreensão cognitiva, atua verdadeiramente como um
intermediário na relação estabelecida entre o autor de uma obra e a comunidade
humana.
A hermenêutica é, seguramente, um tema essencial para o
conhecimento. Tudo o que é apreendido e representado pelo sujeito cognoscente
depende de práticas interpretativas. Como o mundo vem à consciência pela
palavra, e a linguagem é já a primeira interpretação, a hermenêutica torna-se
inseparável da própria vida humana..
Historicamente,
a hermenêutica penetrou, de forma gradativa, no domínio das ciências humanas e
da filosofia, adquirindo, com o advento da modernidade, diversos significados.
Neste sentido, Palmer (1999, p.43-44) assinala que:
O campo da hermenêutica tem sido interpretado (numa ordem
cronológica pouco rigorosa) como: 1) uma teoria da exegese bíblica; 2) uma
metodologia filológica geral; 3) uma ciência de toda a compreensão lingüística;
4) uma base metodológica da geisteswissenschaften; 5) uma fenomenologia da
existência e da compreensão existencial; 6) sistemas de interpretação, simultaneamente
recolectivos e inconoclásticos, utilizados pelo homem para alcançar o
significado subjacente aos mitos e símbolos (...) Cada definição representa essencialmente um ponto de vista a partir do
qual a hermenêutica é encarada; cada uma esclarece aspectos diferentes mas
igualmente legítimos do acto da interpretação, especialmente da interpretação
de textos. O próprio conteúdo da hermenêutica tende a ser remodelado com estas
mudanças de perspectiva.
Buscando
uma síntese das definições expostas, o vocábulo hermenêutica será utilizado, no
presente trabalho, para designar um saber que procura problematizar os
pressupostos, a natureza, a metodologia e o escopo da interpretação humana, nos
planos artístico, literário e jurídico. Por sua vez, a prática interpretativa
indicará uma espécie de compreensão dos fenômenos culturais, nos termos
doravante explicitados.
2. RAÍZES FILOSÓFICAS DA
HERMENÊUTICA JURÍDICA
A
investigação dos fundamentos filosóficos da hermenêutica se justifica,
especialmente, no campo jurídico. Isto porque o horizonte tradicional da
hermenêutica técnica se revela insuficiente para o desiderato da interpretação
do direito. Enquanto instrumental para a exegese de textos, o saber
hermenêutico é reduzido, nesta perspectiva, a um caleidoscópio intricado de
ferramentas teóricas, com vistas à descoberta de uma verdade pré-existente.
Ao revés, torna-se ser necessário um novo tratamento
paradigmático, porque mais amplo, capaz de radicar em novas bases a
interpretação jurídica. Trata-se da hermenêutica filosófica, uma proposta de
reunir os problemas gerais da compreensão no tratamento das práticas
interpretativas do direito.
Neste sentido, afigura-se oportuna a
lição de Arruda Júnior e Gonçalves (2002, p.233):
No ambiente jurídico, a hermenêutica
técnica mais tem servido de abrigo metodológico para os que crêem (ou para os
que preferem fazer crer que crêem) ser a interpretação uma atividade neutra e
científica, na qual outros universos de sentido, como o dos valores, dos
interesses e da subjetividade, não exercem ingerência alguma. Discutir a
hermenêutica filosófica como um novo paradigma cognitivo para saber e a prática
jurídica envolvem a reformulação preliminar daquele território metodológico no
qual são radicalmente delimitadas as possibilidades de percepção e
funcionamento do direito. A concepção hermenêutica sugere formas alternativas,
menos cientificistas e mais historicizadas, para as gerações vindouras
apreenderem o direito como um entre os diversos outros componentes do fenômeno
normativo-comportamental mais geral.
Sendo assim, dando vazão a esta
hermenêutica filosófica, cumpre mapear as referências teóricas mais importantes
para o delineamento do saber hermenêutico, especialmente, a partir da idade
moderna.
Com efeito, após o surgimento das antigas escolas de
hermenêutica bíblica, em Alexandria e Antioquia, passando, durante a idade
média pelas interpretações agostiniana e tomista das sagradas escrituras, a
hermenêutica desembarca na modernidade como uma disciplina de natureza
filológica. Nos albores do mundo moderno, a hermenêutica volta-se para a
sistematização de técnicas de leitura, as quais serviriam à compreensão de
obras clássicas e religiosas. As operações filológicas de interpretação
desenvolvem-se em face de regras rigorosamente determinadas: explicações
lexicais, retificações gramaticais e crítica dos erros dos copistas. O
horizonte hermenêutico é o da restituição de um texto, mais fundamentalmente de
um sentido, considerado como perdido ou obscurecido. Numa tal perspectiva, o
sentido é menos para construir do que para reencontrar, como uma verdade que o
tempo teria encoberto.
A
hermenêutica penetra, então, no campo dos saberes humanos. No início do século
XIX, com o teólogo protestante Friedrich Schleiermacher, assiste-se a uma
generalização do uso da hermenêutica. Esta, embora conservando os seus laços
privilegiados com os estudos bíblicos e clássicos, passa a abarcar todos os
setores da expressão humana. A atenção está cada vez mais orientada não apenas
para o texto, mas, sobretudo, para o seu autor. A leitura de um texto implica,
assim, em dialogar com um autor e esforçar-se por reencontrar a sua intenção
originária.
Para tanto, como se depreende dos escritos de
Schleiermacher (1999), seria necessário abandonar a literalidade da
interpretação gramatical em prol do que ele denominou de interpretação
psicológica. Caberia, assim, ao intérprete mapear as circunstâncias concretas
que influenciaram a elaboração do texto, recriando a mente do autor de acordo
com os influxos sociais que marcaram sua existência.
É, entretanto, com a obra do filósofo Wilhelm
Dilthey, que a hermenêutica adquire o estatuto de um modo de conhecimento da
vida humana, especialmente apto para apreender a cultura, irredutível em si
mesma aos fenômenos naturais. Dilthey propõe, em verdade, o desmantelamento do eu
transcendental dos idealistas alemães, valorizando a experiência humana no
processo hermenêutico. Situa, pois, a tarefa
interpretativa no plano histórico, propondo a explicação e a compreensão,
respectivamente, como modos de cognição da natureza e da realidade
sócio-cultural.
O texto, enquanto objeto hermenêutico, figura como a própria
realidade humana no seu desenvolvimento histórico. A prática interpretativa
deve restituir, por assim dizer, a intenção que guiou o agente no momento da
tomada de decisão, permitindo alcançar o significado da conduta humana. Sendo
assim, Dilthey sustenta que a riqueza da experiência humana possibilita ao
hermeneuta internalizar, por uma espécie de transposição, uma experiência
análoga exterior e, portanto, compreendê-la.
Nos
albores do século XX, firma-se uma a hermenêutica radicada na existência.
Merece registro a contribuição existencialista de Martin Heidegger. Deveras,
Heidegger (1997) opera duas rupturas em relação à concepção hermenêutica,
preconizada por Dilthey.
Em primeiro
lugar, a hermenêutica não é inserida no quadro gnoseológico, como um problema
de metodologia das ciências humanas. Não se trata, como em Dilthey, de opor o
ato de compreensão, próprio das ciências humanas, ao caminho da explicação, via
metodológica das ciências naturais. A compreensão passa a ser visualizada não
como um ato cognitivo de um sujeito dissociado do mundo, mas, isto sim, como um
prolongamento essencial da existência humana. Compreender é um modo de estar,
antes de configurar-se como um método científico.
Ademais, a compreensão não está, na obra de Heidegger,
ligada ao problema do reencontro do outro. Com Heidegger, a indagação
hermenêutica considera menos a relação do intérprete com o outro do que a
relação que o hermeneuta estabelece com a sua própria situação no mundo. O
horizonte da compreensão é a apreensão e o esclarecimento de uma dimensão
primordial, que precede a distinção sujeito/objeto: a do ser-no-mundo.
Sendo
assim, na visão de Heidegger, o enfoque de toda a Filosofia reside no ser-aí,
vale dizer, no ser-no-mundo, ao contrário dos julgamentos definitivos acerca
das coisas-no-ser ou coisas-lá-fora. A pedra angular de seu monumento teórico é
o conceito de dasein, ou seja, a realidade que tem a ver com a natureza do
próprio ser. Heidegger rompe, assim, o dualismo sujeito-objeto em favor de um
fenômeno unitário capaz de contemplar o eu e o mundo, conciliando as diversas
dimensões da temporalidade humana - passado (sido), presente (sendo) e futuro (será)
– como momentos que integram a própria experiência hermenêutica.
Posteriormente,
emerge um novo paradigma hermenêutico, que conforma a atividade interpretativa
como situação humana. Desponta a obra de Hans Georg Gadamer, para quem a
interpretação, antes de ser um método, é a expressão de uma situação do homem.
O hermeneuta, ao interpretar uma obra, está já situado no horizonte aberto pela
obra, o que Gadamer denomina de círculo hermenêutico. A interpretação é,
sobretudo, a elucidação da relação que o intérprete estabelece com a tradição
de que provém. Na exegese de textos literários, o significado não aguarda ser
desvendado pelo intérprete. Em verdade, sustenta Gadamer (1997), o significado
emerge à medida que o texto e o intérprete envolvem-se num permanente diálogo,
balizado pela compreensão prévia que o sujeito cognoscente já possui do objeto – a chamada pré-compreensão. É esta
interação hermenêutica que permite ao intérprete mergulhar na lingüisticidade
do objeto hermenêutico, aproveitando-se da textura aberta de uma dada obra.
Como síntese desta evolução de idéias, desenvolve-se a
fundamentação hermenêutica de Paul Ricoeur. O notável pensador adota uma
posição conciliadora em face da dicotomia diltheyana entre compreensão e
explicação.
Ricoeur (1989) torna a referida dicotomia complementar
através da consideração do fenômeno humano como intermédio simultaneamente
estruturante (o intencional e o possível) e estruturado (o involuntário e o
explicável), articulando a pertença ontológica e a distanciação metodológica. A
autonomização da hermenêutica diante da fenomenologia husserliana é um dos seus
temas fulcrais. Abandonando o primado da subjetividade e o idealismo de
Husserl, assumindo a pertença participativa como pré-condição de todo esforço
interpretativo (Heidegger e Gadamer), Ricoeur desenvolve suas concepções
teóricas, sem esquecer os precursores da teoria geral da interpretação
(Schleiermacher e Dilthey).
Procura-se, assim, consolidar um modelo dialético que
enlaçe a verdade como desvelamento (ontologia da compreensão) e a exigência
crítica representada pelos métodos
rigorosos das ciências humanas
(necessidade de uma explicação). Deste modo, o escopo da interpretação será
reconstruir o duplo trabalho do texto através do círculo ou arco hermenêutico:
no âmbito da dinâmica interna que preside à estruturação da obra (sentido) e no
plano do poder que tem esta obra para se projetar fora de si mesma, gerando um
mundo (a referência).
Com a interpretação de um texto,
segundo Ricoeur, abre-se um mundo, ou melhor, novas dimensões do nosso
ser-no-mundo, porquanto a linguagem mais do que descrever a realidade, revela
um novo horizonte para a experiência humana.
De acordo com Ricoeur, porque a hermenêutica tem a ver
com textos simbólicos de múltiplos significados, os discursos textuais podem
configurar uma unidade semântica que tem - como os mitos - um sentido mais
profundo. A hermenêutica seria o sistema pelo qual o significado se revelaria,
para além do conteúdo manifesto. O desafio hermenêutico seria tematizar
reflexivamente a realidade que está por detrás da linguagem humana.
Deste
modo, é possível afirmar que cada uma destas definições reflete mais do que um
estágio histórico do saber hermenêutico, indicando abordagens relevantes para o
problema da interpretação. Idéias como a recusa à literalidade textual, a
historicidade, a abertura aos valores, a dialogicidade e o horizonte
lingüístico estão umbilicalmente ligadas à hermenêutica jurídica e ao exercício
da interpretação do direito.
3. INTERPRETAÇÃO DO DIREITO: UMA
ATIVIDADE DE COMPREENSÃO
O
mundo jurídico pode ser vislumbrado como uma grande rede de interpretações. Os
profissionais do direito estão, a todo momento, interpretando a ordem jurídica,
como sustenta Wróblewski (1988, p. 17):
La interpretación legal juega un papel central en
cualquier discurso jurídico. En el discurso jurídico-prático se relaciona con
la determinación del significado de los textos legales y a menudo influye en la
calificación de los hechos a los que se aplican las regras legales. En el
discurso teórico-jurídico, en el nível de la dogmática jurídica, la llamada
interpretación doctrinal se utiliza con frecuencia para sistematizar el derecho
en vigor y para construir conceptos jurídicos. Las regras legales se
interpretan también en la actividad legislativa cuando el legislador tiene que
determinar el significado de un texto legal ya existente y cuando considera las
posibles interpretaciones que, en situaciones futuras, puedan tener las regras
que él va a promulgar.
Diante
da profusão de sentidos da ordem jurídica, reflexo de uma dada cultura humana,
a interpretação do direito opera uma verdadeira compreensão, desenvolvendo-se
numa dimensão axiológica.
Com efeito, a própria evolução do saber hermenêutico vem
tornando patente a diversidade dos estilos de conhecimento dos
objetos naturais e culturais. Compreensão e explicação são os modos cognitivos
dos objetos reais. No tocante aos objetos culturais, compreende-se, num
conhecimento mais íntimo, porque é possível ter a vivência de revivê-los.
Compreender um fenômeno, por sua vez, significa envolvê-lo na totalidade de
seus fins, em suas conexões de sentido. Ao contrário, os objetos naturais, por
não consubstanciarem um sentido humano, somente permitem a explicação, o que se
obtém referindo tais fenômenos a uma causa. Explicar seria descobrir na
realidade aquilo que na realidade mesma se contém, sendo que, nas ciências
naturais, a explicação pode ser vista, genericamente, como objetiva, neutra e
refratária ao mundo dos valores.
Disso resulta que, quando explicamos algo, descrevemos
ontologicamente o objeto de análise, ao passo que, na atividade de compreender,
torna-se imprescindível a existência de uma contribuição positiva do sujeito, o
qual realizará as conexões necessárias, executando uma tarefa eminentemente
valorativa e finalística.
As ordens sociais, inclusive a jurídica são objetos da cultura
humana, constituindo realidades significativas que devem ser corretamente
interpretadas.
Neste
sentido, leciona Saldanha (1988, p.244):
Constituindo uma estrutura onde entram valores (ou
valorações), toda ordem porta significações. Se por um lado, a ordem existe na
medida em que é cumprida ou seguida, é evidente que seu cumprimento confirma
suas significações. Toda atividade interpretativa tem de visar, na ordem,
aquilo que é compreensível, isto é, inteligível em sentido concreto. As
significações se comprovam ao ser confirmadas no plano concreto. Destarte
pode-se dizer que um sistema (econômico, político, jurídico) constitui uma
ordem na medida em que é compreensível e interpretável em direção ao concreto.
Para
a apreensão da ordem jurídica, como a de qualquer outra objetivação do espírito
humano, exige-se a utilização de um método adequado, de natureza
empírico-dialética, constituído pelo ato gnoseológico da compreensão.
Conforme assinala Machado Neto (1975, p.11), é mérito
singular do jusfilósofo argentino Carlos Cossio a descoberta de que o ato
gnoseológico da compreensão se realiza através de um método empírico-dialético:
Es,
también, obra de Cossio ese complemento essencial de la epistemología de la
comprensión al descubrir que ésta se da mediante un método que es
empírico-dialéctico. Empírico, porque se trata de hechos, ya que los objetos
culturales son reales espaciotemporales, como ya vimos, y el modo de topar con
ellos es un modo empírico, perceptivo, ya que el substrato lo percibimos con
intuición sensible, viendo, oyendo, oliendo, gustando, palpando... Y dialéctico
porque la comprensión se da en un trabajo dialéctico, algo así como un diálogo
que el espíritu emprende entre el substrato y el sentido, para comprender el
sentido en su substrato y el substrato por su sentido.
Desta
forma, os significados do ordenamento jurídico, assim como o de todo objeto
cultural, revelam-se num processo dialético, num ir e vir da materialidade do
seu substrato à vivência do seu sentido espiritual, vale dizer, do seu texto
tal como lingüisticamente estruturado aos motivos que inspiraram a sua
elaboração. Esse ir e vir dialético manifesta-se, metaforicamente, como um
balançar de olhos entre texto e realidade, entre norma e situação normada, num
processo aberto e infinito, significativamente ilustrado pela figura geométrica
da espiral.
Também
a hermenêutica jurídica assim se processa. Ao interpretar um comportamento, no
plano da intersubjetividade humana, o hermeneuta irá referi-lo à norma
jurídica, o comportamento figurando como substrato e a norma como o sentido
jurídico de faculdade, prestação, ilícito ou sanção. Como este significado
jurídico é co-participado pelos atores sociais, o intérprete do direito atua
como verdadeiro porta-voz do entendimento societário, à proporção que
exterioriza os valores fundantes de uma comunidade jurídica.
4. TECNOLOGIA HERMENÊUTICA:
DA LETRA AO ESPÍRITO DO DIREITO
Ao
disciplinar a conduta humana, os modelos normativos utilizam palavras - signos
lingüísticos que devem expressar o sentido daquilo que deve ser. A compreensão
jurídica dos significados que referem os signos demanda o uso de uma tecnologia
hermenêutica.
Ainda
que os estudos mais recentes de Hermenêutica Jurídica apontem para a sua
essência filosófica, não há como negar a sua relevante função instrumental, à
medida que oferece técnicas voltadas para o norteamento das práticas
interpretativas do direito.
Saliente-se,
por oportuno, que as diversas técnicas interpretativas não operam isoladamente.
Antes se completam, mesmo porque não há, na teoria jurídica interpretativa, uma
hierarquização segura das múltiplas técnicas de interpretação. Neste diapasão,
sustenta Mourullo (1988, p.64):
En realidad la interpretación de la norma jurídica
es siempre pluridimensional, no unidimensional, y se va desarrollando desde
diversas perspectivas. Se habla, como de todos es sabido, de una interpretación
histórica, sistemática, gramatical y teleológica. Cada una de estas
interpretaciones nos ofrece distintos puntos de vista para comprenderle sentido
último de la norma.
Tradicionalmente,
a doutrina vem elencando as seguintes técnicas interpretativas: a gramatical, a
lógico-sistemática, a histórica, a sociológica e a teleológica.
Através
da técnica gramatical ou filológica, o hermeneuta se debruça sobre as
expressões normativas, investigando a origem etimológica dos vocábulos e
aplicando as regras estruturais de concordância ou regência, verbal e nominal.
Trata-se de um processo hermenêutico quase que superado, ante o anacronismo do
brocardo jurídico – in claris cessat interpretatio.
Ao
processo hermenêutico gramatical, logo se ajunta a técnica lógico-sistemática,
que consiste em referir o texto ao contexto normativo de que faz parte,
correlacionando, assim, a norma ao sistema do inteiro ordenamento jurídico e
até de outros sistemas paralelos, conformando o chamado direito comparado.
Em se
tratando de interpretação legal, deve-se, portanto, cotejar o texto normativo
com outros do mesmo diploma legal ou de legislações diversas, mas referentes ao
mesmo objeto, visto que, examinando as prescrições normativas, conjuntamente, é
possível verificar o sentido de cada uma delas.
Nos domínios da hermenêutica geral,
com a internalização do conceito-chave de círculo hermenêutico, poderá o
jurista afirmar que só existe interpretação sistemática. Isto porque a
compreensão das normas jurídicas, como, de resto, a compreensão de todos os
objetos culturais, ocorre no âmbito de uma estrutura circular, na qual se
apreende o todo a partir das partes, e, reciprocamente, as partes a partir do
todo sistêmico.
Munido da
técnica histórica, o intérprete perquire os antecedentes imediatos (v.g.,
declaração de motivos, debates parlamentares, projetos e anteprojetos) e
remotos (e.g., institutos antigos) do modelo normativo.
A seu
turno, processo sociológico de interpretação do direito objetiva: conferir a
aplicabilidade da norma jurídica às relações sociais que lhe deram origem;
elastecer o sentido da norma a relações novas, inéditas ao momento de sua
criação; e temperar o alcance do preceito normativo, a fim de fazê-lo espelhar
as necessidades atuais da comunidade jurídica.
Segue-se,
umbilicalmente ligado à técnica sociológica, o processo teleológico que
objetiva depreender a finalidade do modelo normativo. Daí resulta que a norma
se destina a um escopo social, cuja valoração dependerá do hermeneuta, com base
nas circunstâncias concretas de cada situação jurídica. A técnica teleológica procura,
deste modo, delimitar o fim, vale dizer, a ratio essendi do preceito
normativo, para a partir dele determinar o seu real significado. A delimitação
do sentido normativo requer, pois, a captação dos fins para os quais se
elaborou a norma jurídica.
A interpretação teleológica serve de norte para os demais
processos hermenêuticos. Isto é assim porque convergem todas as técnicas
interpretativas em função dos objetivos que informam o sistema jurídico. Toda
interpretação jurídica ostenta uma natureza teleológica, fundada na
consistência axiológica do direito. Compartilhando deste entendimento,
pontifica Reale (1996, p.285):
Interpretar uma lei importa, previamente, em
compreendê-la na plenitude de seus fins sociais, a fim de poder-se, desse modo,
determinar o sentido de cada um de seus dispositivos. Somente assim ela é
aplicável a todos os casos que correspondam àqueles objetivos. Como se vê, o
primeiro cuidado do hermeneuta contemporâneo consiste em saber qual a
finalidade social da lei, no seu todo, pois é o fim que possibilita penetrar na
estrutura de suas significações particulares.
Logo, o sincretismo dos caminhos interpretativos,
iluminados que são pela teleologia do direito, permite que o intérprete
transcenda da palavra em direção ao espírito do ordenamento jurídico.
5. DO SUBJETIVISMO AO NOVO
OBJETIVISMO JURÍDICO
O transcurso histórico da
hermenêutica jurídica vem sendo marcado pela polarização entre o subjetivismo e
o objetivismo. Trata-se de grande polêmica relativa ao referencial que o
intérprete do direito deve seguir para desvendar o sentido e o alcance dos
modelos normativos, especialmente das normas legais: a vontade do legislador (voluntas
legislatoris) ou a vontade da lei (voluntas legis).
O problema é apresentado por Engish (1988, p.170):
Antes, é precisamente aqui que começa a problemática
central da teoria jurídica da interpretação: O conteúdo objectivo da lei e,
conseqüentemente, o último escopo da interpretação, são determinados e fixados
através da vontade do legislador histórico, manifestada então e uma vez por
todas, de modo que a dogmática jurídica deve seguir as pegadas do historiador
(...), ou não será, pelo contrário, que o conteúdo objectivo da lei tem
autonomia em si mesmo e nas suas palavras, enquanto vontade da lei, enquanto sentido
objectivo que é independente do mentar e do querer subjectivos do legislador
histórico e, que, por isso, em caso de necessidade, é capaz de movimento
autônomo, é susceptível de evolução como tudo aquilo que participa do espírito
objectivo?
Sendo
assim, a corrente subjetivista pondera que o escopo da interpretação é estudar
a vontade histórico-psicológica do legislador expressa na norma. A
interpretação deve verificar, de modo retrospectivo, o pensamento do legislador
estampado no modelo normativo. De outro lado, a vertente objetivista preconiza
que, na interpretação do direito, deve ser vislumbrada a vontade da lei, que,
enquanto sentido objetivo, independe do querer subjetivo do legislador. A norma
jurídica seria a vontade transformada em palavras, uma força objetivada
independente do seu autor. O sentido incorporado no modelo normativo se
apresentaria mais rico do que tudo o que o seu criador concebeu, porque
suscetível de adaptação aos fatos e valores sociais.
Neste
sentido, a depender do referencial hermenêutico utilizado, a interpretação do
direito modulará a própria expressão do discurso jurídico, valorizando a ordem,
com a adoção do subjetivismo, ou a mudança, quando iluminada pelo objetivismo.
Com
base neste entendimento, pondera Andrade (1992, p.19):
Como uma operação de esclarecimento do
texto normativo, a interpretação aumenta a eficácia retórica ou comunicativa do
direito, que é uma linguagem do poder e de controle social. E dependendo da
técnica adotada, a interpretação pode exercer uma função estabilizadora ou
renovadora e atualizadora da ordem jurídica, já que o direito pode ser visto
como uma inteligente combinação de estabilidade e movimento, não recusando as
mutações sociais. Assim, o direito pretende ser simultaneamente estável e mutável.
Todavia é preciso ressaltar que a segurança perfeita significaria a absoluta
imobilidade da vida social, enfim, a impossibilidade da vida humana. Por outro
lado, a mutabilidade constante, sem um elemento permanente, tornaria impossível
a vida social. Por isso o direito deve assegurar apenas uma dose razoável de
ordem e organização social, de tal modo que essa ordem satisfaça o sentido de
justiça e dos demais valores por ela implicados.
Combinando
a exigência de segurança com o impulso incessante por transformação, a
hermenêutica jurídica contemporânea se inclina, pois, para a superação do
tradicional subjetivismo - voluntas legislatoris, em favor de um novo
entendimento do objetivismo - voluntas legis, realçando o papel do
intérprete na exteriorização dos significados da ordem jurídica.
Com base neste redimensionamento do
modelo objetivista, pode-se afirmar que o significado jurídico não está à
espera do intérprete, como se o objeto estivesse desvinculado do sujeito
cognoscente – o hermeneuta. Isto porque conhecimento é um fenômeno que consiste na
apreensão do objeto pelo sujeito, não do objeto propriamente dito, em si e por
si, mas do objeto enquanto objeto do conhecimento.
O
objeto do conhecimento, portanto, é, de certo modo, uma criação do sujeito, que
nele põe ou supõe determinadas condições para que possa ser percebido. Nessa
perspectiva, não tem sentido cogitar-se de um conhecimento das coisas em si
mesmas, mas apenas de um conhecimento de fenômenos, isto é, de coisas já
recobertas por aquelas formas, que são condições de possibilidade de todo
conhecimento. Em virtude da função constitutiva do sujeito no âmbito da relação
ontognosiológica, não se poderá isolar o intérprete do objeto hermenêutico.
Eis
o magistério de Pasqualini (2002, p.171):
Na acepção mais plena, o sentido não existe apenas
do lado do texto, nem somente do lado do intérprete, mas como um evento que se
dá em dupla trajetória: do texto (que se exterioriza e vem à frente) ao
intérprete; e do intérprete (que mergulha na linguagem e a revela) ao texto.
Esse duplo percurso sabe da distância que separa texto e intérprete e, nessa
medida, sabe que ambos, ainda quando juntos, se ocultam (velamento) e se
mostram (desvelamento). Longe de sugerir metáforas forçadas, a relação entre
texto e intérprete lembra muito a que se estabelece entre músico e instrumento
musical: sem a caixa de ressonância de um violino, suas cordas não têm nenhum
valor, e essas e aquela, sem um violinista, nenhuma utilidade.
O
conhecimento dos objetos culturais também não se identifica com o objeto desse
conhecimento, conclusão que se impõe, com mais força, na apreensão da cultura
humana, à medida que tais objetos, sendo realidades significativas ou
objetivações do espírito, exigem maior criatividade do sujeito para se revelarem
em toda plenitude. Como o direito integra o mundo cultural, o conhecimento das
normas jurídicas está submetido a todas as vicissitudes que singularizam o
processo gnosiológico do espírito humano.
O
significado objetivo dos modelos normativos é, em larga medida, uma construção
dos sujeitos da interpretação jurídica, com base em dados axiológicos extraídos
da realidade social. Toda norma só vigora, portanto, na interpretação que lhe
atribui o aplicador. O sentido da norma legal não é um ato voluntário, completamente
produzido no momento em que se dá origem à lei, mas uma energia que a regenera
de modo contínuo, como se estivesse a produzi-la numa gestação infinita. A interpretação jurídica não consiste em
pensar de novo o que já foi pensado, mas em conceber até ao fim aquilo que já
começou a ser pensado pelo legislador, de modo a delimitar a real vontade da
lei.
Neste diapasão, leciona Bergel (2001, p.320):
A questão não é então saber se o intérprete deve ser
médium ou cientista, se pratica obra jurídica ou política, nem se a
interpretação participa da criação ou da aplicação das normas jurídicas. Isso
depende somente da liberdade que se lhe reconhece ou da fidelidade que se lhe
impõe com referência ao direito positivo. Observa-se, por certo, que a lei só
adquire um sentido com a aplicação que lhe é dada e que o poder assim
reconhecido ao intérprete atesta a fragilidade da ordem normativa: nenhum
preceito da lei., diz-se ainda, recebe seu sentido de um âmago legislativo;
torna-se significativo com a aplicação que lhe é dada e graças à interpretação que esta implica.
6.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Em face do exposto, pode-se
concluir que:
- o saber hermenêutico
desponta no quadro geral do conhecimento humano, ao problematizar as diversas
modalidades de interpretação;
- a hermenêutica jurídica,
iluminada pelos contributos filosóficos, oferece relevantes subsídios para a
interpretação do direito;
- a interpretação jurídica
pode ser concebida como uma atividade de compreensão, por envolver a apreciação
dos valores e finalidades de um fenômeno histórico-cultural;
- as técnicas hermenêuticas permitem a superação da literalidade das fórmulas
normativas em favor da teleologia do sistema jurídico;
-
a transição do subjetivismo para o novo objetivismo hermenêutico possibilita o
desenvolvimento de uma interpretação jurídica dinâmica e prospectiva.
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