SEGUNDA LEITURA
Brasil não reconhece foro privilegiado a filhos de ex-presidentes
1 de novembro de 2015, 8h05
Por Vladimir Passos de Freitas
No dia 24 passado, terça-feira, às 23h, a Polícia Federal em São Paulo
intimou Luis Cláudio Lula da Silva, filho do ex-presidente Luiz Inácio Lula da
Silva, no escritório de quem foi feita uma busca e apreensão na segunda-feira,
para prestar depoimento em inquérito policial. A intimação do suspeito deu-se
logo após a saída da residência do pai, que na ocasião comemorava 70 anos de
idade.
Segundo consta, trata-se da terceira fase da operação zelotes, que
investiga suposta compra de medidas provisórias editadas com o fim específico
de favorecer montadoras de veículos. Conforme notícia, “a empresa LFT Marketing
Esportivo, do filho caçula de Lula, recebeu R$ 2,4 milhões de Marcondes & Mautoni,
suspeita de intermediar a venda de uma medida provisória aprovada durante o
governo do petista que isentou montadoras de veículos”[1].
O fato gerou enorme revolta no ex-chefe do Poder Executivo, que atribuiu
a intimação a uma campanha de ódio e criminalização que dirigem contra a sua
pessoa. De sobra, atribuiu ao ministro José Eduardo Cardoso, cuja saída do
Ministério da Justiça defende[2],
ser culpado porque não tem o controle da Polícia Federal.
O inconformismo do ex-presidente da República merece algumas
considerações, via de regra não tratadas na doutrina. Vejamos.
A primeira delas é sobre o horário de a polícia intimar alguém. O Código
de Processo Penal (artigos 370 a 372) e o Código de Processo Civil (artigos 234
a 242), tratando de ações penais e civis, nada dispõem a respeito. Se não é
vedada a citação em horário noturno, fora do domicílio, com maior razão não
poderá ser proibida a intimação policial.
Da polícia não só se espera como se exige agilidade. Intimações e
citações não são recebidas com alegria, e é comum que oficiais de Justiça,
agentes ou investigadores policiais tenham grande dificuldade em encontrar as
pessoas. É mais fácil ter acesso a um juiz do que a um CEO de uma grande corporação.
Portanto, o uso de estratégias para cumprir os atos faz parte da ação policial
e não constitui abuso de autoridade.
A segunda é a revolta do ex-presidente contra a investigação dos atos de
seus filhos. Do ponto de vista familiar, a reação é absolutamente justificável.
Pais sofrem com o sofrimento dos filhos. Nesse foco, há que ser dado o
desconto, a revolta é compreensível. No entanto, do ponto de vista de quem é o
investigado — filho de um ex-magistrado supremo da República —, a reação
não tem qualquer justificativa.
No regime democrático, todos são iguais perante a lei. Todos se submetem
a ela e por ela têm garantido o direito de defesa, no momento e local próprios.
Os tempos são outros, empresários de elevado nível social e econômico,
políticos, juízes encontram-se presos, provisória ou definitivamente. Todos sob
a garantia do devido processo legal e não como sucedia no regime militar,
por força de uma prisão de até 60 dias, decretada pela autoridade que presidia
o inquérito policial militar (artigo 59 do Decreto-Lei 898/69).
A terceira observação diz respeito à cobrança do ministro da Justiça,
que não teria o controle da Polícia Federal. Essa se reveste de gravidade,
porque pressupõe interferência no andamento de investigações. A Polícia
Federal, prevista no artigo 144, inciso I, da Constituição, tem o dever de
apurar eventuais crimes praticados contra a União. Por força do esforço e do
valor de seus membros, muito mais do que por sua estrutura que é deficitária,
vem prestando relevantes serviços ao país. E é a respeitabilidade por ela
conquistada que lhe dá ampla independência para apurar delitos contra pessoas
de elevado nível social, político e econômico.
Supor que um ministro da Justiça venha a interceder a favor de suspeitos
é acreditar no tráfico de influências como forma de ditar o rumo das
investigações. Tal tipo de atitude certamente submeteria o titular da pasta da
Justiça a uma ação de improbidade administrativa (Lei 8.429/92, artigo 11,
incisos I e II), sem prejuízo de outros reflexos na área penal (v.g., artigo
319 do Código Penal).
Ademais, o ministro José Eduardo Cardoso é um professor de Direito
(PUC-SP), um acadêmico que faz doutorado na Universidade de Salamanca, Espanha.
Em tempos de radicalização e ódio, é preciso isenção para observar que o
ministro tem se conduzido com correção nas suas complexas e relevantes funções.
Em entrevista, ele foi claro ao dizer: “Jamais um ministro da Justiça, num
Estado de Direito, deve orientar investigações, dizendo que os inimigos devem
ser atingidos e os amigos poupados”[3].
O fato de ele ter pedido informações à Policia Federal não altera o quadro, foi
mero dever protocolar.
A quarta observação é que o interesse do ex-presidente deveria ser a
total apuração dos fatos. Com efeito, o sucesso financeiro de seu filho deve
ser-lhe motivo de grande satisfação e orgulho, visto que a maioria dos jovens
está lutando por um emprego de R$ 2 mil. Uma investigação como a que se realiza
pode ser a oportunidade de mostrar a todos que o sucesso foi alcançado
legitimamente. Um atestado oficial de idoneidade.
Finalmente, há que se registrar que o combate aos crimes econômicos está
mudando, no Brasil e no mundo. O Fórum Global sobre Transparência e Troca de
Informações para Fins Tributários, em reunião em Barbados, com 128 países,
promete fechar o cerco. Avalia-se que “a coleta de dados financeiros começará
em 1º de janeiro de 2016 em cerca de 50 jurisdições. Para isso, os governos
estão mudando as legislações nacionais para cada banco reportar as contas de
todos os clientes não residentes e, de forma automática, enviar as informações
a partir de 2017 aos países de origem desses clientes”[4].
Fácil é ver que no Brasil os órgãos públicos (DPF, MP, Judiciário,
Receita Federal, Bacen, TCU, CGU e outros) se profissionalizam e adquirem
conhecimentos profundos sobre a matéria. Na mudança de paradigma, também a
advocacia irá se adaptar aos novos tempos, a prevenção será a tônica, sendo a
orientação especializada o melhor caminho. Nessa linha, as alegações de
nulidade não terão o sucesso do passado. Por sua vez, a sociedade se mobilizará
cada vez mais, inclusive criando observatórios na internet para acompanhar os
recursos nos tribunais, apontando nomes dos relatores, datas, tempo da demora e
resultados dos julgamentos.
Em suma, as instituições estão mudando, funcionando, ninguém está fora
do alcance da lei. Assim, pretender que alguém não seja investigado por conta
de seu parentesco é inadmissível no atual estágio democrático que atravessa o
Brasil.
[1] Estado
de São Paulo, 29.10.2015, A8.
[2] Folha de S.Paulo 30.10.2008, A4.
[3] http://politica.estadao.com.br/noticias/geral,se-achar-que-nao-contribuo-mais--sairei--diz-cardozo,1718279, acesso 28.10.2015.
[4] Valor Econômico, 30.10.2015, A1.
[2] Folha de S.Paulo 30.10.2008, A4.
[3] http://politica.estadao.com.br/noticias/geral,se-achar-que-nao-contribuo-mais--sairei--diz-cardozo,1718279, acesso 28.10.2015.
[4] Valor Econômico, 30.10.2015, A1.
Vladimir Passos de Freitas é desembargador federal aposentado do
TRF da 4ª Região, onde foi corregedor e presidente. Mestre e doutor em Direito
pela UFPR, pós-doutor pela Faculdade de Saúde Pública da USP, é professor de
Direito Ambiental no mestrado e doutorado da PUC-PR. Presidente eleito da
"International Association for Courts Administration - IACA", com sede
em Louisville (EUA). É vice-presidente do Ibrajus.
Revista Consultor Jurídico, 1 de novembro de 2015, 8h05