Posted by carlosgarbi
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Na área do direito de família e do direito da
personalidade as mudanças sociais e dos costumes, bem como a maior liberdade
reconhecida hoje no âmbito das relações privadas pessoais, tem trazido aos
Tribunais, especialmente no Brasil, questões juridicamente novas.
É certo dizer que não é nova a manifestação do transexualismo, mas novo é o tratamento jurídico
que se deve dar a este fenômeno social. O jurista não pode decidir com
preconceitos, porque deve ter em conta que é preciso dar solução jurídica a
realidade que não pode ignorar. Existem pessoas que, não obstante a morfologia
masculina ou feminina, se identificam plenamente com outro sexo. São pessoas
que sofrem não só o constrangimento social decorrente dessa contrariedade, mas
igualmente sofrem todas as dificuldades jurídicas que esta situação impõe na
prática dos atos e negócios jurídicos.
A propósito desta situação participei do julgamento
no Tribunal, recentemente, de um caso que o requerente, transexual, pretendia a
retificação do registro civil e dos seus documentos de identificação pessoal
para fazer constar que é do gênero masculino. Essa pessoa já havia removido
cirurgicamente os seios e pretendia fazer em breve a cirurgia de redesignação
sexual. Ocorre que a sentença deferiu apenas a retificação do nome no registro
civil, mas não de sexo. No Tribunal houve consenso sobre a mudança do sexo, mas
a divergência se instalou quanto à publicidade da retificação. Prevaleceu o
entendimento do Relator, que acompanhei com a declaração de voto que transcrevo
a seguir, para restringir a publicidade da retificação.
O processo (Apelação nº
00028083-77.2009.8.26.0562, TJSP) correu em segredo de justiça e por isso o
nome da parte não é revelado.
[ DECLARAÇÃO DE VOTO VENCEDOR ]
1. – O requerente pede a retificação do seu assento de nascimento para
alteração de gênero, agora masculino, e do nome, agora adequado ao sexo
masculino.
A sentença deferiu o pedido apenas para alterar o
nome, negando a alteração do sexo no registro civil, daí o recurso de apelação.
2. – Respeitado o entendimento em sentido contrário, penso que o pedido do
requerente deve ser deferido integralmente, nos termos exatos do erudito voto
do Desembargador Beretta da Silveira, relator sorteado.
O que procura o requerente não é somente evitar o
constrangimento de exibir o documento de identificação pessoal com o registro
de gênero diverso da sua real identificação sexual. Pretende a retificação do
registro civil para que lhe seja atribuída formal e legalmente a sua verdadeira
identificação masculina, que sempre assumiu como portador de transexualismo.
Os documentos que se encontram nos autos dão prova
convincente da manifestação do transexualismo e de todas as suas
características, demonstrando que o requerente sofre inconciliável
contrariedade pela identificação sexual feminina que tem hoje. Sempre agiu e se
apresentou socialmente como homem e é seu desejo inarredável mudar a sua
definição sexual no registro civil.
Colho do parecer subscrito pelo Culto Procurador de
Justiça, Doutor Almir Gasquez Rufino, quando oficiava em primeiro grau no Foro
Regional do Tatuapé, na Capital, importantes subsídios a respeito do tema que,
pela excelência do trabalho, me permito reproduzir:
“Apreciados os elementos de prova coligidos,
deve-se agora ressaltar que a situação do requerente em nada se confunde com a
do travesti; tampouco se trata de hermafrodita, bissexual, homossexual e muito
menos de transformista; antes, se cuida de transexual masculino. Já faz
tempo, HELENO CLÁUDIO FRAGOSO escreveu que o transexualismo não se confunde com
o homossexualismo. Os homossexuais, disse, “convivem com o próprio sexo e
estão certos de pertencer a ele. Os costumes e vestuários próprios do sexo
masculino não os agridem psicologicamente, embora alguns prefiram uma aparência
bizarra e excêntrica, afetada e efeminada. Outros, ao contrário, desejam
uma aparência máscula, cultivando atributos masculinos (barba, bigode,
costeletas) e vestuário adequado. Os transexuais, ao contrário, sentem-se como
indivíduos ‘fora do grupo’ desde o início, não participando com espontaneidade
e integração do ambiente por eles freqüentado. Por seu turno, os
travestis, de um modo geral, podem levar vidas duplas, apresentando-se ora como
indivíduos do sexo masculino, ora transvestidos. Há uma ‘tolerância’ em
relação a ambos os comportamentos em que há predominância de um ou de outro por
um período variável, às vezes de certa maneira cíclica ou temporária,
ocasional. Do travesti difere o transexual fundamentalmente no desejo compulsivo
de reversão sexual, que os travestis não apresentam, e no comportamento mais
feminino” .
O transexual, mais propriamente ensina o conhecido
cirurgião ROBERTO FARINA, “tem genitália masculina e cérebro feminino.
Isso explica porque nem a influência do meio ambiente, nem a educação alteram a
sua realidade. Ele não se torna transexual, ele já nasce transexual. O
transexual masculino é um indivíduo de alma feminina enclausurada num corpo
masculino. A partir dos quatro anos, ele demonstra preferir roupas, brinquedos
e companhia de meninas. Já na adolescência, repudia a própria genitália como
excrescência repulsiva. Os conflitos psicológicos daí decorrentes são
incalculáveis, geradores de muita ansiedade e grande desespero. O
resultado final, quando não há tratamento cirúrgico, pode chegar até mesmo à
ocorrência de automutilação (amputação peno-escrotal, no caso de transexual
masculino, ou deformação constritiva das mamas, no caso de transexual feminino)
ou suicídio. É bom lembrar que o transexual não é homossexual,
transvestido e nem hermafrodita”. O transexual, continua – veja-se, neste
ponto, a identificação do ensinamento com o caso dos autos -, tem “um perfil
psicossomático próprio: o transexual masculino assume, em gerar, o papel
feminino apesar do corpo de homem e apesar do alto preço que a sociedade lhe
impõe (segregação, chacotas, situação não legalizada etc.); de maneira geral, é
muito casto e cometido, e o transexual masculino é feminino e não efeminado,
como acontece com os homossexuais; depois de operado, consegue se realizar com
a perfeita adequação do sexo orgânico ao sexo genérico (cerebral)”. Por
isso, conclui, a “sociedade precisa abrir os olhos, inteirando-se do drama
vivido pelo transexual, para não cair no terceiro gênero de cérebro denunciado
por Maquiavel” .
Com outras palavras, a respeitada TEREZA RODRIGUES
VIEIRA, com justiça freqüentemente lembrada em questões como a dos autos,
aclara que transexualismo “é a convicção absoluta de uma pessoa, de sexo
fisicamente determinado ao nascer, de pertencer psicologicamente ao outro
sexo. Este indivíduo não quer simplesmente mudar de sexo; tal adequação
lhe é imposta de forma irreversível, portanto ele nada mais reclama que a
colocação de sua aparência física em concordância com seu verdadeiro sexo, ou
seja, o sexo psicológico” .
Certa vez, ALBERT EINSTEIN afirmou: “Época triste a
nossa, em que é mais difícil quebrar um preconceito do que um átomo”.
Estava certo. Os átomos são facilmente “quebráveis”; já os preconceitos, muitos
deles permanecem inquebrantáveis. O Direito deve caminhar para superar
essa situação, para vencer a intolerância, dando o exemplo de respeito pelos
anseios e manifestações externadas pelos mais diversos segmentos sociais,
pondo-se de parte questões religiosas, por mais respeitáveis que sejam. E
isso a pouco e pouco vem ocorrendo, como particularmente demonstram os julgados
das Cortes de Justiça estaduais. Como ressaltou o Ministro MARCO AURÉLIO
MELLO, do Supremo Tribunal Federal, tratando do tema da interrupção de gravidez
de feto anencéfalo, “há que se calçar o sapato não com o próprio pé, mas com o
pé do outro, de modo a sentir exatamente onde lhe machuca o calo. Para
aguçar o termômetro da sensibilidade, é de bom alvitre perguntar a si mesmo,
antes de qualquer decisão: e se fosse com a minha filha?” (A dor a mais, Folha
de São Paulo, ed. de 20.10.2004, “Opinião”, p. 3).
Vossa Excelência não ignora que os rápidos avanços
obtidos pela medicina permitem hoje a identificação de uma série de distúrbios
de ordem genética. Exteriorizam-se durante o desenvolvimento embrionário e são
capazes de originar indivíduos com genitália masculina ou feminina
aparentemente normais, mas com as funções cerebrais do sexo oposto ao que
aparentam. O resultado disso são pessoas que acabam desenvolvendo graves
problemas psicológicos, ainda mais quando se considera o estigma que pesa sobre
os indivíduos que sofrem dessas disfunções.
É verdade que não há disposição legal expressa
autorizando (mas também, forçoso é reconhecer, não há proibição, de maneira
que, a princípio, o ato poderia ser praticado, a teor do que dispõe o art. 5º,
“caput”, inc. II, da Constituição Federal; cf. RT 745/106), por motivo de
cirurgia, a alteração do sexo constante do registro de nascimento . Mas
não menos acertado será afirmar que o acolhimento dessa pretensão encontra
fundamento em preceitos e princípios encontráveis na própria Constituição
Federal e nas leis ordinárias. Em primeiro lugar, deve-se apontar o
festejado princípio da dignidade da pessoa humana, que se traduz no pilar de
todo o ordenamento jurídico nacional, tornando todos os indivíduos merecedores
da consideração do Estado, como sujeitos de direitos e titulares do respeito da
comunidade em que vivem (art. 1º, “caput”, inc. I, da Constituição Federal).
A própria Constituição Federal também destaca,
dentre os direitos sociais, a saúde (art. 6º), prescrevendo ser “direito de
todos e dever do Estado” (art. 196). Neste ponto, é importante salientar
que, segundo a Organização Mundial da Saúde, o conceito de saúde compreende não
apenas o bem-estar físico, mas também o social e psíquico. Consoante
anotado, no transexual, essa situação de conflito acarreta-lhe um desajuste
psíquico que reclama reparação.
Ainda a Constituição Federal arrola, como objetivos
fundamentais da República, construir uma sociedade livre, justa e solidária
(art. 3º, inc. I), bem assim prover o bem de todos, sem preconceitos de origem,
raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação (inc.
IV).
A tudo se acresce que, sobre se tratar, já se
disse, de procedimento (inominado) de jurisdição voluntária, o juiz, como
deflui do art. 1.109 do CPC, não é obrigado a observar, na sentença, critério
de legalidade estrita, podendo adotar, em cada caso, a solução que reputar mais
conveniente ou oportuna. Cumpre-lhe aplicar o critério da eqüidade, não
estando jungido à estrita observância do direito aplicável à espécie, ao
enquadramento rígido, frio e estático da lei. Impedir, no caso, “as
retificações pretendidas importaria em condenar o requerente, para o resto de
sua vida, a constantes constrangimentos e vexames, expô-lo perpetuamente ao
ridículo…” (Jurisprudência Catarinense 76/756).” (Parecer do Ministério Público lançado nos autos do
Proc. nº 04.003.124-9, da 2ª Vara de Família e Sucessões, datado de 05 de abril
de 2006)
Nesse sentido, admitindo integralmente a pretensão
do requerente é a orientação da jurisprudência do Egrégio Superior Tribunal de
Justiça:
“… a cirurgia de transgenitalização já é uma
realidade institucional, incluída, recentemente, na lista de procedimentos
custeados pelo Sistema Único de Saúde. O Conselho Federal de Medicina reconhece
o “transexualismo” como um transtorno de identidade sexual e a cirurgia de
redesignação sexual como uma solução terapêutica. Tanto é assim, que o
procedimento foi regulamentado pela Resolução desse Conselho sob n.º 1.482/97,
que foi substituída, em 6 de novembro de 2002, pela Resolução n.º 1.652/2002,
tendo como inovação significativa o fato de que as cirurgias para adequação do
fenótipo masculino para feminino deixam de ser experimentais, considerados os
avanços da medicina e o grande número de cirurgias realizadas com êxito no
mundo todo.
Os preceitos contidos na referida resolução se
coadunam com o art. 13 do CC/02, segundo o qual a disposição de parte do
próprio corpo apenas seria possível nos casos de exigência médica.
Ocorre que não há norma específica no ordenamento
jurídico brasileiro regulando a alteração do assento de nascimento em casos de
transexualidade, em que pese a existência, no Congresso Nacional, do Projeto de
Lei n.º 70, do ano de 1995, o qual propõe acréscimo de dois parágrafos ao art.
58 da Lei dos Registros Públicos e possibilita, assim, a mudança do prenome e
do sexo do transexual em seu assento de nascimento.
Essa constatação, todavia, não tem o condão de
fazer com que o fato social da transexualidade fique sem solução jurídica,
sendo aplicável à espécie o disposto nos arts. 4º da LICC e 126 do CPC. Cumpre
à construção pretoriana, in casu, suprir a lacuna legislativa.
[...]
Desta feita, em consonância com o art. 13 do CC/02
e, mais do que isso, com a solução aplicada em casos semelhantes pelos acórdãos
paradigmas, conclui-se que se o Estado consente com a possibilidade de
realizar-se cirurgia de transgenitalização, logo deve também prover os meios
necessários para que o indivíduo tenha uma vida digna e, por conseguinte, seja
identificado jurídica e civilmente tal como se apresenta perante a sociedade.
E a tendência mundial é a de alterar-se o registro
adequando-se o sexo jurídico ao sexo aparente, ou seja, à identidade sexual,
formada também por componentes psicossociais. Analisada a questão com base no
direito comparado, constata-se, por exemplo, a existência de lei alemã
regulando o registro dos transexuais desde 10 de setembro de 1980 (Lei dos
Transexuais – Transsexuellengesetz – TSG). Essa norma permite tanto a alteração
do prenome do transexual (kleine Lösung – “pequena solução”), quanto a modificação
do gênero sexual em seu assento de nascimento, desde que tenha sido submetido à
cirurgia de redesignação sexual (groâe Lösung – “grande solução”).
A regulamentação da situação registrária dos
transexuais alemães ocorreu após uma decisão do Tribunal Constitucional Alemão
(Bundesverfassungsgericht ), de 11 de outubro de 1978, que reformou acórdão
proferido pelo Tribunal Federal alemão (Bundesgerichtshof – BGH), o qual
considerava o processo de metamorfose sexual imoral e contrário aos bons
costumes. Considerando a lacuna legislativa então existente, o Tribunal
constitucional alemão asseverou que “a sexualidade de uma pessoa não deve ser
determinada somente pelas propriedades de seus órgãos sexuais, mas também
por suas características psicológicas. O ordenamento jurídico não pode
deixar de considerar esse aspecto, porque ele influi na capacidade pessoal de
integração da pessoa às funções sociais de seu gênero sexual da mesma maneira
que suas características físicas, quando não de maneira maior.” (Bundesverfassungsgericht
, j. em 11 de outubro de 1978 – 1 BvR 16/72, in BverfGE 49, 286, <291>).
O Prof. Antonio Chaves, em artigo sobre o assunto,
compilou ainda alguns acórdãos proferidos por Tribunais italianos que admitem a
possibilidade de o transexual obter a retificação de seu registro civil
(Antonio Chaves, Castração. Esterilização. Mudança artificial de sexo, Revista
Forense, vol. 276, p. 13).
A lei portuguesa tampouco faz qualquer referência
explícita à situação dos transexuais. A solução consolidada na jurisprudência
portuguesa, em face de tal situação, é a de admitir a alteração do registro,
desde que verificadas as circunstâncias que a permitam, uma vez que o registro
deve manter-se em conformidade com a nova realidade relativa ao sexo adquirido
por quem efetuou a cirurgia de transgenitalização. Nesse sentido, cabe
transcrever ementa de acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Lisboa, ao
considerar a existência de lacuna legislativa e a necessidade de pronunciamento
acerca da possibilidade jurídica da mudança de sexo:
“I – O transexual, ou seja, o indivíduo cujo perfil
psicológico profundo é contrário ao seu cariotipo, tem tendência insensível de
fazer coincidir sua aparência sexual com o seu verdadeiro sentir, ‘corrigindo,
assim, a natureza’.
II – Deste modo, um pseudo-hermafrodita masculino,
que mediante operações tomou a aparência física de mulher, tem direito, visto a
lei portuguesa o não proibir, ainda que o não preveja, de ver rectificado o seu
registro civil, de forma a que dele passe a constar ser indivíduo do sexo
feminino e não masculino.” (Tribunal da Relação de Lisboa, Apelação n.º 16009,
j. em 17/1/1984, Rel. Des. Ribeiro de Oliveira).
O Tribunal Europeu de Direitos do Homem, por sua
vez, pronunciou-se com decisão condenatória contra a França, pelo fato de a
Corte de Cassação francesa não ter acatado pedido de redesignação no assento
civil de transexual operado. A condenação provocou uma reformulação no
entendimento do Judiciário francês, que tem proferido decisões favoráveis à pretensão
de alteração do designativo do sexo de transexuais operados, com base no
respeito ao princípio da vida privada e familiar das pessoas, disposto no art.
8º da Convenção Européia dos Direitos do Homem.
Sob a perspectiva dos princípios da Bioética – de
beneficência, autonomia e justiça –, a dignidade da pessoa humana deve ser
resguardada, em um âmbito de tolerância, para que a mitigação do sofrimento
humano possa ser o sustentáculo de decisões judiciais, no sentido de
salvaguardar o bem supremo e foco principal do Direito: o ser humano em sua
integridade física, psicológica, socioambiental e ético-espiritual.
O transexual, segundo literatura médica,
experimenta a insustentável condição de nascer com cromossomos, genitais e
hormônios de um sexo, mas com a convicção íntima de pertencer ao gênero oposto.
Repudia o que a natureza lhe legou, vivendo um estranhamento em relação ao
próprio corpo, o que desencadeia grande frustração e desconforto, rejeição do
fenótipo, bem como tentativas de automutilação e até mesmo de autoextermínio.
Explicam, os psiquiatras, que os transexuais não
são pessoas de um sexo que desejam se tornar do outro sexo; psicologicamente
eles já são do sexo oposto ao biológico, o que gera o transtorno de identidade
sexual, incluído na 10ª versão da Classificação Internacional de Doenças, da
Organização Mundial da Saúde, catálogo conhecido como CID-10.
[...]
Em última análise, afirmar a dignidade humana
significa para cada um manifestar sua verdadeira identidade, o que inclui o
reconhecimento da real identidade sexual, em respeito à pessoa humana como
valor absoluto.
Somos todos filhos agraciados da liberdade do ser,
tendo em perspectiva a transformação estrutural por que passa a família, que
hoje apresenta molde eudemonista, cujo alvo é a promoção de cada um de seus
componentes, em especial da prole, com o insigne propósito instrumental de
torná-los aptos de realizar os atributos de sua personalidade e afirmar a sua
dignidade como pessoa humana.
A situação fática experimentada pelo recorrente tem
origem em idêntica problemática pela qual passam os transexuais em sua maioria:
um ser humano aprisionado à anatomia de homem, com o sexo psicossocial
feminino, que, após ser submetido à cirurgia de redesignação sexual, com a
adequação dos genitais à imagem que tem de si e perante a sociedade, encontra
obstáculos na vida civil, porque sua aparência morfológica não condiz com o
registro de nascimento, quanto ao nome e designativo de sexo.
[...]
A ambiguidade sexual decorrente do fenômeno da
transexualidade, por sua vez, é de índole meramente biológica, porque no
sentido psicossocial, o transexual tem a convicção de pertencer ao sexo oposto,
com sentimentos, percepções, índole e conduta condizentes com o sexo oposto, em
contraposição à genitália, que lhe expõe ao opróbio, aviltando-lhe o espírito.
Conservar o “sexo masculino” no assento de
nascimento do recorrente, em favor da realidade biológica e em detrimento das
realidades psicológica e social, bem como morfológica, pois a aparência do
transexual redesignado, em tudo se assemelha ao sexo feminino, equivaleria a
manter o recorrente em estado de anomalia, deixando de reconhecer seu direito
de viver dignamente.
Assim, tendo o recorrente se submetido à cirurgia
de redesignação sexual, nos termos do acórdão recorrido, existindo, portanto,
motivo apto a ensejar a alteração para a mudança de sexo no registro civil, e a
fim de que os assentos sejam capazes de cumprir sua verdadeira função, qual
seja, a de dar publicidade aos fatos relevantes da vida social do indivíduo,
forçosa se mostra a admissibilidade da pretensão do recorrente, devendo ser
alterado seu assento de nascimento a fim de que nele conste o sexo feminino,
pelo qual é socialmente reconhecido.
[...]
Deve, pois, ser facilitada a alteração do estado sexual,
de quem já enfrentou tantas dificuldades ao longo da vida, vencendo-se a
barreira do preconceito e da intolerância. O Direito não pode fechar os olhos
para a realidade social estabelecida, notadamente no que concerne à identidade
sexual, cuja realização afeta o mais íntimo aspecto da vida privada da pessoa.
E a alteração do designativo de sexo, no registro civil, bem como do prenome do
operado, é tão importante quanto a adequação cirúrgica, porquanto é desta um
desdobramento, uma decorrência lógica que o Direito deve assegurar.
Sobretudo, assegurar ao transexual o exercício
pleno de sua verdadeira identidade sexual consolida, sobretudo, o princípio
constitucional da dignidade da pessoa humana, cuja tutela consiste em promover
o desenvolvimento do ser humano sob todos os aspectos, garantindo que ele não
seja desrespeitado tampouco violentado em sua integridade psicofísica. Poderá,
dessa forma, o redesignado exercer, em amplitude, seus direitos civis, sem
restrições de cunho discriminatório ou de intolerância, alçando sua autonomia
privada em patamar de igualdade com os demais integrantes da vida civil. A
liberdade se refletirá na seara doméstica, profissional e social do recorrente,
que terá, após longos anos de sofrimentos, constrangimentos, frustrações e
dissabores, enfim, uma vida plena e digna.
De posicionamentos herméticos, no sentido de não se
tolerar “imperfeições” como a esterilidade ou uma genitália que não se conforma
exatamente com os referenciais científicos, e, consequentemente, negar a
pretensão do transexual de ter alterado o designativo de sexo e nome, subjaz o
perigo de estímulo a uma nova prática de eugenia social, objeto de combate da
Bioética, que deve ser igualmente combatida pelo Direito, não se olvidando os
horrores provocados pelo holocausto no século passado.”(RECURSO ESPECIAL Nº 1.008.398 – SP, Rel. Ministra
Nancy Andrighi, dj. 15.10.2099)
Em outro caso julgado pelo Egrégio Superior
Tribunal de Justiça foi expressamente examinada a questão da averbação do
registro e determinado que a averbação não se faça pública: “Vale ressaltar
que os documentos públicos devem ser fiéis aos fatos da vida, além do que deve
haver segurança nos registros públicos. Dessa forma, no livro cartorário, à
margem do registro das retificações de prenome e de sexo do requerente, deve
ficar averbado que as modificações procedidas decorreram de sentença judicial
em ação de retificação de registro civil. Tal providência decorre da
necessidade de salvaguardar os atos jurídicos já praticados, objetiva manter a
segurança das relações jurídicas e, por fim, visa solucionar eventuais questões
que sobrevierem no âmbito do direito de família (casamento), no direito
previdenciário e até mesmo no âmbito esportivo. [...] Todavia, tal averbação
deve constar apenas do livro de registros, não devendo constar nas certidões do
registro público competente nenhuma referência de que aludida alteração é
oriunda de decisão judicial, tampouco que ocorreu por motivo de cirurgia de
mudança de sexo, sob pena de manter a exposição do indivíduo a situações
constrangedoras e discriminatórias.” (RECURSO ESPECIAL nº 737.993 – MG,
Rel. Ministro João Otávio de Noronha, dj. 10.11.2009)
O direito não pode ficar alheio à realidade do fato
social e deve encontrar solução adequada para dar ao homem vida digna. Essa
solução está ao alcance da jurisdição. Basta retificar o registro e manter a
publicidade das informações retificadas sujeitas exclusivamente ao conhecimento
do próprio requerente e à requisição judicial (certidão de inteiro teor), para
salvaguarda de direitos, preservando-se assim a dignidade do requerente que tem
direito a obter pleno efeito da retificação determinada. Não há, sempre
respeitado o entendimento em sentido contrário, solução intermediária, porque,
ou se reconhece que o requerente se identifica pelo gênero masculino e se
empresta à retificação todos os efeitos que ela deve ter, ou se nega o
pedido. O contrário impõe ao requerente séria restrição à existência digna,
subtraindo-lhe direitos que são assegurados ao homem e à mulher igualmente,
como se fosse pessoa de terceiro gênero, desconhecido do nosso ordenamento.
Nesse sentido é o parecer bem fundamentado da
Doutora Carmen Beatriz A. Ungaretti Selingardi Guardia, Procuradora de Justiça
do Ministério Público, que sustenta que deve ser “vedada qualquer menção nas
certidões registrárias, sob pena de restar mantida situação constrangedora e
discriminatória”.
3. – Pelo exposto, acompanho o voto do Douto Relator para DAR PROVIMENTO ao
recurso e deferir a retificação do sexo do requerente no assento de nascimento,
que deve agora registrar “sexo masculino”, mantendo a publicidade das
informações retificadas sujeitas exclusivamente ao conhecimento do próprio
requerente e à requisição judicial (certidão de inteiro teor), para salvaguarda
de direitos, vedada a referência à retificação nas certidões do registro.
(a) CARLOS ALBERTO GARBI
Está em trâmite no Senado Federal importante Projeto de Lei n. 658/11, de autoria da
Senadora Marta Suplicy, que prevê a possibilidade de retificação do registro
independentemente da cirurgia de redesignação. O Relatório na Comissão de Direitos Humanos
e Legislação Participativa, de 16 de junho de 2012, é do Senador Eduardo
Matarazzo Suplicy. Sobre o referido Projeto vale assistir à entrevista
do Doutor Amaro Senna publicada pelo Supremo Tribunal Federal. Siga
o link.
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