Diário de
Classe Fonte Conjur
É preciso
desfazer imagem eficientista do juiz como agente regulador
13 de
janeiro de 2018, 8h00
No
"Diário de Classe" de hoje, vamos tentar responder a uma constante
indagação dos alunos dos mais diversos níveis: o que é isto — a eficiência. E
qual é a sua relação com o processo. Ao trabalho. A eficiência é atributo das organizações
(personificadas ou despersonificadas). Quanto maior o desempenho, tanto mais
eficientes. Nesse sentido, ela pode aferir-se em dois planos: 1) relação input-output;
2) relação output-goal. Em (1), eficiência significa "maximização
de resultados com o mínimo de recursos" (isto é, aproveitamento);
em (2), significa "proximidade dos resultados às metas
preestabelecidas" (isto é, rendimento). Daí se vê que entre (1) e
(2) existe um vínculo de prejudicialidade: o aproveitamento é condição
necessária, mas não suficiente, ao rendimento; a organização que bem aproveita
seus recursos não atinge necessariamente suas metas, mas a organização que
atingiu suas metas necessariamente bem aproveitou seus recursos. Ou seja, uma
organização só será eficiente se bem avaliada nos dois critérios. Enfim,
só será eficiente se tiver um desempenho satisfatório tanto em
aproveitamento quanto em rendimento.
No plano do Direito do Estado,
nada impede que se atribua o dever de eficiência às organizações
administrativas, legislativas e jurisdicionais. No Brasil, porém, a CF/1988 se
cinge às administrativas (artigo 37, caput). Isso não significa
que organizações legislativas e jurisdicionais estejam fadadas à ineficiência:
pode a lei imputar-lhes o aludido dever. No caso das organizações jurisdicionais,
por exemplo, pode a lei imputar-lhes os deveres de aproveitamento [=
julgamento do maior número de feitos com o mínimo de recursos humanos e
materiais] e de rendimento [= alcance das metas de julgamento fixadas
por órgãos de planejamento estratégico]. Decerto isso exigiria um novo juiz
(o managerial judge), com vocações e capacitações incomuns. Surgiriam em
consequência, ao menos, três necessidades institucionais para o Judiciário:
concursos de magistratura capazes de detectar lideranças gerenciais; cursos
regulares e obrigatórios de formação e aperfeiçoamento para a capacitação de
juízes em liderança motivacional, técnicas de reunião etc.; estruturação de um staff
assessorial, sob a supervisão do juiz, para a redação de minutas decisórias e a
pesquisa de doutrina e jurisprudência.
No entanto, da eficiência dos
órgãos jurisdicionais não se pode derivar uma "eficiência do
processo". A eficiência é imputável sempre à organização, não ao
procedimento que a controla. Logo, a rigor, "eficiência
processual" é non sense. Ainda que assim não seja, se se tomar
eficiência como "capacidade de consecução de metas, objetivos ou
finalidades", o processo (o "devido processo legal") será tanto
mais eficiente quanto mais contiver o arbítrio do Estado-juiz; no final das
contas, essa é a sua missão constitucional como garantia de liberdade.
Por isso, eficiência jurisdicional não implica maleabilidade procedimental per officium
iudicis. Eficiência é tema de direito jurisdicional (que regula o
poder), não de direito processual (que regula a respectiva garantia). Isso
significa que, a pretexto de otimizar a sua produção decisória, o juiz não pode
imprimir unilateralmente supressões ou modificações ao procedimento previsto em
lei. Somente as partes podem fazê-lo mediante negócio processual (CPC,
artigo 190), visto que a elas serve o processo e, portanto, o procedimento que
o corporifica. Flexibilização procedimental pelo juiz caracteriza usurpação
de competência legislativa: cabe ao juiz apenas seguir o procedimento definido in
abstrato na lei, não criar in concreto procedimentos a seu talante.
Procedimento é produto de fábrica
legislativa, não manufatura de artesanato judicial. Compete ao legislador
definir o proceder do juiz e das partes, não ao juiz definir, apesar das
partes, o proceder dele e delas. O iudicare e o procedere se
regem pela lei e só por ela. O contrajurisdicional não pode ser regulado pelo
jurisdicional, sob pena de se tornar pró-jurisdicional. Na verdade, é regulado
pelo legislativo, de onde emana the general will of the people. O poder
emana do povo, não dos juízes. O povo, por meio dos seus representantes eleitos
democraticamente, regula a contrajurisdicionalidade. Isso mostra que a
flexibilização procedimental ex officio é, em última análise, um
atentado à própria democracia. Por essa razão, é desacertado o Enunciado 35 da
Enfam ("Além das situações em que a flexibilização do procedimento é
autorizada pelo artigo 139, VI, do CPC/2015, pode o juiz, de ofício,
preservada a previsibilidade do rito, adaptá-lo às especificidades da causa,
observadas as garantias fundamentais do processo").
Como se não bastasse, desestruturando-se
o arranjo procedimental, pode-se prejudicar a função contrajurisdicional do
processo. A força da macrogarantia constitucional processual depende da correta
arrumação das microgarantias infraconstitucionais procedimentais. O vigor do
constituído depende de uma disposição ótima entre os constituintes. Daí o risco
de que, flexibilizando o procedimento, o juiz enfraqueça in causa sua a
garantia contra ele instituída. Permitir que o juiz interfira no procedimento é
permitir que o limitado afrouxe o limitante. É fazer o poder jurisdicional um
pouco mais incontrastável (e um pouco menos republicano, pois).
Inúmeras garantias individuais
têm sido ultimamente "ressignificadas" [rectius: mutiladas] à
luz do princípio da eficiência. É preciso barrar essa onda neo-autoritária,
porém. Cânones de eficiência estatal não restringem garantias individuais;
decididamente, são garantias individuais que restringem cânones de eficiência
estatal. São as instituições de garantia que "ressignificam" as
instituições de poder, não o contrário. É o procedimento que limita os arroubos
da eficiência jurisdicional, não a eficiência jurisdicional que otimiza o
procedimento como se fosse ele um lego desmontável no formato A e remontável no
formato B. Imperativos de aproveitamento e rendimento no serviço público não
justificam a debilitação dos cidadãos. Assim sendo, a eficiência da empresa
jurisdicional não se pode fazer às custas da integridade procedimental, que
escuda os jurisdicionados. Flexibilização procedimental oficiosa é sinônimo de lesão
procedimental e, por conseguinte, de afronta à garantia individual
contrajurisdicional primeira, que é o processo (o devido processo legal
a que alude o artigo 5º, LIV, da CF). Que se logre a eficiência jurisdicional
mediante, por exemplo, planejamento estratégico, governança judiciária, fixação
e monitoração de metas de produtividade, capacitação gerencial de magistrados,
implantação de boas práticas cartorárias, gestão computacional de feitos,
calendarizações negociadas, despachos inteligentes, especialização de varas e
turmas julgadoras. Contudo, que os juízes respeitem o procedimento arquitetado
constitucionalmente na lei, salvo se as partes consentirem com a
flexibilização. Isso porque, para as partes, o procedimento é plástico; para o
juiz, rígido. Afinal, o processo é coisa para as partes (como quer o garantismo
processual); não "das" partes (como quer uma teoria
anárquico-esportiva do processo); tampouco "do" ou
"para" o juiz (como quer o instrumentalismo processual).
É necessário desfazer a imagem
eficientista do juiz como "agente regulador". As partes não atuam sob
diretrizes fixadas pelo juiz. O procedimento não se regra por dupla
normatividade, uma composta de leis [marco regulatório originário],
outra de resoluções judiciais criativas [marco regulatório derivado].
Enfim, o procedimento não se arma segundo a lei [sub legem] e
também à margem dela [præter legem]. Não é ejetado da dupla matriz
legislativo-jurisdicional. Não há "devido processo
legal+jurisdicional", mas apenas "devido processo legal". Só a
lei disciplina o procedimento. Logo, o juiz não cria marcos regulatórios, mas
garante às partes os já fixados em lei. Nesse sentido, o juiz não é um agente
regulador, mas garantidor: garante a realização do procedimento legal nas
diferentes ocorrências contingentes. Nada mais do que isso.
Eduardo José da Fonseca Costa é juiz
federal, mestre e doutor em Direito (PUC-SP), pós-doutorando pela Unisinos e
presidente da Associação Brasileira de Direito Processual (ABDPro). Diretor da
RBDpro. Membro do IBDP, do IPDP, do IIDP e do Dasein – Núcleo de Estudos
Hermenêuticos.
Revista Consultor Jurídico,
13 de janeiro de 2018, 8h00
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