segunda-feira, 16 de abril de 2018

Direito Tributário Descaminho não é crime sem lançamento de crédito


Direito Tributário
Descaminho não é crime sem lançamento de crédito
27 de junho de 2010, 6h01
 No descaminho, a simples entrada ou saída do produto, por si só, não é crime, se o agente não ilude o pagamento do imposto; enquanto, no contrabando, o crime se consuma com a simples entrada ou saída do produto proibido, sem se falar em incidência de tributos. Ambos são crimes materiais, porém no descaminho o núcleo do tipo está na ilusão do pagamento.
 Daí porque o descaminho é um crime de natureza tributária, diferentemente do contrabando, conforme explica Luiz Régis Prado:
 “num enfoque moderno, contrabando passou a denotar a importação e exportação de mercadoria proibida por lei, enquanto que descaminho significa a fraude ao pagamento de tributos aduaneiros. Diferenciam-se, pois, porque enquanto este constitui um crime de natureza tributária, clarificando uma relação fisco-contribuinte, o contrabando expressa a importação e exportação de mercadoria proibida, não se inserindo, portanto, no âmbito dos delitos de natureza tributária. Assim, ao serem vedadas a importação ou exportação de determinada mercadoria, a violação legal do preceito estatal constitui um fato ilícito e não um fato gerador de tributos”.[23]
 O contrabando, portanto, segue sendo punível independentemente de constituição de crédito tributário.
 Do que acima se expôs, podemos traçar as seguintes etapas para o raciocínio conclusivo:
 8.1) O fato de o descaminho estar tipificado no Código Penal, em capítulo dos crimes contra a administração pública não obsta que tenha o mesmo tratamento jurídico conferido aos demais crimes contra a ordem tributária previstos na Lei 8.137/90. Todos os crimes fiscais inserem-se no contexto de proteção aos amplos interesses da Administração Pública, estejam eles tipificados no Código Penal ou em legislação esparsa.
 8.2) O descaminho nada mais é do que uma modalidade de sonegação fiscal especificamente relacionada a operações aduaneiras. O núcleo do tipo do art.334 ("iludir, no todo ou em parte, o pagamento de direito ou imposto") é exatamente o mesmo da sonegação fiscal previsto no artigo 1º da Lei 8.137/90 ("suprimir ou reduzir tributo").
 8.3) Havendo decisões do STF aplicando o princípio da insignificância em hipóteses de descaminho, fica evidente a natureza patrimonial do bem juridicamente protegido, já que a jurisprudência tem afastado a aplicação deste princípio nos casos em que se busca proteger valores não patrimoniais, tais como a fé pública.
 8.4) O descaminho é um crime material, porque exige, para a sua consumação, a ilusão no pagamento integral ou parcial do direito ou imposto. A simples leitura do tipo (art.334, caput, 2ª parte) deixa transparecer que não se trata de crime meramente formal. A lei fala em iludir o pagamento, e não apenas em adotar medidas materiais com essa finalidade.

8.5) A consumação de descaminho exige que tenha havido entrada ou saída de mercadoria do País e que a autoridade competente apure e exija o crédito tributário que deixou de ser declarado nessa operação, configurando a ilusão do pagamento.
 8.6) O STF considerou o prévio e definitivo lançamento tributário como elemento objetivo do tipo penal nos crimes fiscais materiais (Súmula Vinculante n. 24). Esse preceito não decorre da existência de um grau de comunicação entre as instâncias administrativa e criminal, nem tampouco do estabelecimento de uma regra de dependência decisória daquela em relação a esta. Considerou-se simplesmente que a constituição formal do crédito tributário, por meio do lançamento definitivo, é pressuposto para a própria ocorrência do crime.
 8.7) Apesar de a Súmula Vinculante n. 24 apenas fazer menção à modalidade de sonegação fiscal prevista no art.1º, I, da Lei 8.137/90, a mesma razão justifica idêntico tratamento jurídico em relação aos demais crimes fiscais materiais, como é o caso do descaminho.
 8.8) A importação de mercadorias, ao desamparo de guia de importação ou documento de efeito equivalente, é qualificada como “dano ao erário” punido com a pena de perdimento, consoante previsto no art.23, I e parágrafo 1º do Decreto 1.455/76, com a redação dada pela Lei 10.637/2002, bem como no art. 689 do Decreto 6.759/2009 (Regulamento Aduaneiro).
 8.9) Se a mercadoria importada ou exportada ilegalmente vem a ser confiscada pela Administração, não cabe cobrança de tributo a ela referente. E se porventura tiver havido declaração de importação, a posterior decretação de perdimento do bem dá ao antigo proprietário o direito de pedir de volta o tributo que eventualmente tenha adiantado ao fazer a declaração.
 8.10) O confisco de bens é incompatível com a tributação. Se houver decretação de perdimento, tem-se uma espécie de extinção antecipada da potencial obrigação tributária que sequer vem a ser constituída, pois a pena administrativa impede a incidência do tributo ou a ocorrência do fato gerador do imposto aduaneiro, obstando o próprio desembaraço.
 8.11) O Regulamento Aduaneiro, ao tratar do imposto de importação (art.71, III), diz expressamente que não incide o imposto sobre mercadoria estrangeira que tenha sido objeto de pena de perdimento. O mesmo ocorre em relação ao imposto sobre produtos industrializados (arts. 238 c/c 570, parágrafo1º, II c/c 571 do Regulamento Aduaneiro), assim como a contribuição para o PIS/PASEP-importação e a COFINS-importação (art.250 c/c 71, III).
 8.12) Não sendo hipótese de incidência tributária, sequer se poderia falar em ilusão do pagamento de imposto ou direito. Logo, o núcleo do tipo penal do art.334 não ocorre.
 8.13) Ao contrário do tipo penal do descaminho (CP, art. 334, 2ª parte), que busca proteger a ordem tributária consubstanciada na arrecadação de tributos, o tipo penal do art.334, caput, 1ª parte, visa impedir a entrada no país de produtos considerados nocivos sob vários aspectos, daí porque o contrabando segue sendo punível independentemente de constituição de crédito tributário.
 Em suma, para a configuração do crime de descaminho, tal como tipificado no ordenamento jurídico brasileiro (art.334, caput, 2ª parte), faz-se necessário que tenha havido o lançamento definitivo do crédito tributário, de modo a se identificar o tributo objeto de ilusão. Não constituído o tributo ou tendo havido a decretação de perdimento de bens, não há justa causa para a persecução criminal.


 [1] Conforme leciona Francisco de Assis Toledo, “os crimes complexos são em geral crimes pluriofensivos por lesarem ou exporem a perigo de lesão mais de um bem jurídico tutelado”. In Princípios básicos de Direito Penal, 5.ed., Saraiva, p.145.
 [2] O latrocínio, por exemplo, apesar de ser um crime hediondo que atinge também a vida, encontra-se tipificado no Código Penal no capítulo dos crimes contra o patrimônio (art.157, §3º, 2ª parte), com destaque para o elemento subjetivo do tipo, razão pela qual não vem sendo considerado como da competência do tribunal do júri (Súmula 603 do STF).
 [3] Além de se referir aos crimes fiscais previstos na Lei n. 4729/65, o art.18, §2º do DL 157/67 também determinava a extinção da punibilidade quando a imputação penal estivesse relacionada a falta de pagamento de tributo.
 [4] “A extinção da punibilidade pelo pagamento do tributo devido estende-se ao crime de contrabando ou descaminho por força do art.18, §2º, do Decreto-lei 157/1967”.
 [5] A doutrina considera que a expressão “pagamento de direito”, no art.334, está “no seu sentido histórico, como apelido dos antigos gravames que pesavam sobre importação (‘direitos de importação’, ‘direitos aduaneiros’ e ‘direitos alfandegários’)”. Maximiliano Roberto Ernesto Führer e Maximilianus
Durval Carneiro Neto é juiz federal substituto na 2ª Vara Criminal da Bahia, professor assistente na UFBA e mestre em Direito Público pela UFBA.
Revista Consultor Jurídico, 27 de junho de 2010, 6h01

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