ArtigosCivil por Flávio Tartuce 11.abr.2017
Estão todos os interditados
livres da incapacidade? posição contrária (Flávio Tartuce) e posição favorável
(José Fernando Simão).
é Doutor em Direito Civil e Graduado pela Faculdade
de Direito da USP. Mestre em Direito Civil Comparado e Especialista em Direito
Contratual pela PUCSP. Professor Titular permanente do Programa de Mestrado e
Doutorado da Faculdade Autônoma de Direito (FADISP-ALFA). Professor do Curso de
Graduação da Escola Paulista de Direito (EPD, São Paulo), na disciplina Direito
Contratual. Coordenador e Professor dos Cursos de Pós-Graduação Lato Sensu em
Direito Civil e Processual Civil, Direito Civil e Direito do Consumidor,
Direito Contratual e Direito de Família e das Sucessões da EPD. Professor
exclusivo da Rede de Ensino LFG nos cursos preparatórios para as carreiras
jurídicas. Professor convidado em outros cursos de Pós-Graduação Lato Sensu
pelo País, em Escolas da Magistratura, na AASP e na ESA-OABSP. Membro do
Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM), do Instituto
Luso-Brasileiro de Direito Comparado, do Instituto dos Advogados de São Paulo
(IASP), da Comissão de Direito Civil da OABSP, do Instituto Brasileiro de
Política e de Direito do Consumidor (BRASILCON), do Instituto Brasileiro de
Direito Civil (IBDCivil), da International Society of Family Law (ISFL) e da
Rede Brasileira de Pesquisadores em Direito Internacional (RBPDI).Parecerista
membro do Conselho Editorial da Revista Brasileira de Direito Civil, do
IBDCivil, e da Revista Brasileira de Direito das Famílias e das Sucessões, do
IBDFAM. Membro avaliador do CONPEDI (Conselho Nacional de Pesquisa e
Pós-Graduação em Direito). Palestrante em cursos, congressos e seminários
jurídicos. Advogado e consultor jurídico em São Paulo.
Ou precisamos de sentença para
levantar as interdições?
Não, com sentença.
Flávio Tartuce
O Estatuto da Pessoa com Deficiência – Lei n.
13.146/2015 – trouxe importantes mudanças na teoria das incapacidades,
alterando substancialmente os arts. 3º e 4º do Código Civil, bem como o sistema
da curatela. A norma regulamentou a Convenção de Nova Iorque, tratado de
direitos humanos do qual o País é signatário e que tem força de Emenda à
Constituição, pelo que consta do art. 5º, § 3º, do Texto Maior.
A citada lei visa à inclusão da pessoa com
deficiência, definida como “aquela que tem impedimento de longo prazo de
natureza física, mental, intelectual ou sensorial, o qual, em interação com uma
ou mais barreiras, pode obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade
em igualdade de condições com as demais pessoas” (art. 2º da Lei n.
13.146/2015). São seus fundamentos, entre outros, a equalização de direitos e a
não discriminação, havendo a substituição da premissa da dignidade-vulnerabilidade
pela dignidade-igualdade.
Como já desenvolvi em outros textos, e também em
palestras e exposições, o EPD gerou uma série de problemas jurídicos,
destacando-se a ausência de qualquer previsão a respeito de maiores que sejam
absolutamente incapazes e os atropelamentos legislativos provocados pelo
Novo Código de Processo Civil. Na atualidade, a ilustrar, não se sabe ao certo
qual a ação cabível em casos de reconhecimento de incapacidade, se a ação de
interdição – como está no CPC/2015 –, ou se a ação de nomeação de curador –
como pretende, na essência, o citado Estatuto. Muitos dos problemas da novel
legislação tendem a ser resolvidos – e espero que o sejam –, por meio do
Projeto de Lei n. 757/2015, em curso no Senado Federal.
Uma dessas questões pendentes diz respeito à
situação das pessoas que se encontram interditadas quando da entrada em vigor
do Estatuto da Pessoa com Deficiência. Passam elas a ser automaticamente
capazes ou há necessidade de uma ação – e consequente sentença –, para o
levantamento da interdição? Na doutrina, existem duas correntes bem definidas
sobre o tema.
Para a primeira vertente, os portadores de
deficiência passam a ser plenamente capazes com a emergência do EPD. Nessa
esteira, opina José Fernando Simão que “todas as pessoas que foram interditadas
em razão de enfermidade ou deficiência mental passam, com a entrada em vigor do
Estatuto, a serem consideradas plenamente capazes. Trata-se de lei de estado.
Ser capaz ou incapaz é parte do estado da pessoa natural. A lei de estado tem
eficácia imediata e o levantamento da interdição é desnecessário. Ainda, não
serão mais considerados incapazes, a partir da vigência da lei, nenhuma pessoa
enferma, nem deficiente mental, nem excepcional (redação expressa do artigo 6º
do Estatuto)” (Estatuto da Pessoa com Deficiência causa perplexidade
(Parte I). Disponível em:
<http://www.conjur.com.br/2015-ago-6/jose-simao-estatuto-pessoa-deficiencia-causa-perplexidade>.
Acesso em: 14 mar. 2017).
De outra banda, posiciona-se Pablo Stolze Gagliano
no sentido de ser necessária uma ação de reabilitação ou de levantamento da
interdição com tais fins: “não sendo o caso de se intentar o levantamento da
interdição ou se ingressar com novo pedido de tomada de decisão apoiada, os
termos de curatela já lavrados e expedidos continuam válidos, embora a sua
eficácia esteja limitada aos termos do Estatuto, ou seja, deverão ser
interpretados em nova perspectiva, para justificar a legitimidade e autorizar o
curador apenas quanto à prática de atos patrimoniais. Seria temerário, com
sério risco à segurança jurídica e social, considerar, a partir do Estatuto,
‘automaticamente’ inválidos e ineficazes os milhares − ou milhões − de termos
de curatela existentes no Brasil. Até porque, como já salientei, mesmo após o
Estatuto, a curatela não deixa de existir” (É o fim da interdição?
Disponível em: <http://flaviotartuce.jusbrasil.
com.br/artigos/304255875/e-o-fim-da-interdicao-artigo-de-pablo-stolze-gagliano>.
Acesso em: 14 mar. 2017).
Entre uma corrente e outra, estou filiado à segunda
posição, pelos argumentos desenvolvidos por Pablo Stolze, os quais subscrevo, especialmente
com base na estabilidade social e na proteção do ato jurídico perfeito (art.
5º, XXXVI, da CF/1988). Por isso, sugeri, em parecer dado ao Projeto de
Lei n. 757/2015 e a pedido do Senador Antonio Carlos Valadares, que, para os
casos de pessoas que se encontrarem interditadas na entrada em vigor da Lei n.
13.146/2015, será necessária uma ação de levantamento da interdição, para o
retorno da plena capacidade civil.
Cumpre observar que, na prática, julgados estaduais
não só reconhecem essa necessidade de levantamento da interdição, como trazem a
imperiosa verificação do enquadramento dos deficientes como relativamente
incapazes, ou não. A título de exemplo, fazendo tal análise, do Tribunal Gaúcho
entendeu-se que: “diante das alterações feitas no Código Civil pelo Estatuto da
Pessoa com Deficiência (Lei n. 13.146/2015), o apelante não pode ser mais
considerado absolutamente incapaz para os atos da vida civil. A sua patologia
psiquiátrica (CID 10 F20.0, Esquizofrenia) configura hipótese de incapacidade
relativa (art. 4º, inciso III, e 1.767, inciso I do CC, com a nova redação dada
pelo Estatuto da Pessoa com Deficiência), não sendo caso de curatela ilimitada.
Caso em que o recurso vai parcialmente provido, para reconhecer a incapacidade
relativa do apelante, mantendo-lhe o mesmo curador e fixando-se a extensão da
curatela, nos termos do artigo 755, inciso I, do CPC/15, à prática de atos de
conteúdo patrimonial e negocial, bem como ao gerenciamento de seu tratamento de
saúde” (TJRS, Apelação Cível 70069713683, Oitava Câmara Cível, Relator Rui
Portanova, julgado em 15/9/2016).
Com o devido respeito, considerar que a pessoa
interditada passa a ser plenamente capaz com a emergência do EPD afasta essa
análise pontual, de acordo com o caso concreto, o que é primaz para a correta
efetividade da curatela e para a estabilidade do Direito Civil. Como tenho
escrito e defendido, o Estatuto traz uma análise mais maleável da situação
existencial da pessoa com deficiência, o que somente é concretizado por meio de
uma nova análise do seu enquadramento.
Sim, sem
sentença.
José
Fernando Simão[1]
O Estatuto da Pessoa com Deficiência, Lei
13.146/2015, representou uma mudança radical para o Direito Civil ao abalar a
milenar teoria das incapacidades.
A proposta inclusiva do Estatuto é clara: a pessoa
com deficiência não tem uma doença, por isso não se utiliza o termo “portador
de Síndrome de Down”. A pessoa com deficiência é igual às demais e por isso não
precisa de receber a proteção decorrente da incapacidade. A pessoa com
deficiência, pelo Estatuto, não pode ser chamada de deficiente.
Nessa esteira, cabe lembrar que o Estatuto da
Pessoa com Deficiência é decorrente da Convenção de Nova Iorque que, além de
versar sobre Direitos Humanos e ter status de emenda
constitucional, reflete a mais moderna visão inclusiva que dá concretude à
dignidade da pessoa humana.
Bem, se o Estatuto acertou ou errou em sua
orientação, é tema que já debati à exaustão e, portanto, não será objeto da
presente reflexão. Entendo que errou, e muito, na alteração das regras
concernentes à capacidade de fato.
O artigo 6º do Estatuto deixa clara sua premissa:
“a deficiência não afeta a plena capacidade civil da pessoa”. Isso se reforça
com a previsão do artigo 84: “a pessoa com deficiência tem assegurado o direito
ao exercício de sua capacidade legal em igualdade de condições com as demais
pessoas”.
Em razão dessa premissa há a revogação de dois
incisos do artigo 3º do Código Civil, que cuida da incapacidade absoluta e de
um inciso do art. 4º que cuida da incapacidade relativa.
Foram suprimidos os seguintes dispositivos do
Código Civil:
a) os que, por enfermidade
ou deficiência mental, não tiverem o necessário discernimento para a prática
desses atos (art. 3º, II);
b) os que, mesmo por causa
transitória, não puderem exprimir sua vontade (art. 3º, III);
c) os excepcionais, sem
desenvolvimento mental completo (art. 4º, III).
O resultado da mudança é que, após a vigência do
Estatuto, só há uma hipótese de incapacidade relativa: os menores de 16 anos.
Por outro lado, há uma nova hipótese de incapacidade relativa: “aqueles que,
por causa transitória ou permanente, não puderem exprimir sua vontade”.
Resta, então, uma questão: as pessoas que foram
interditadas, ou seja, consideradas incapazes com base nos dispositivos do
Código Civil revogados pelo Estatuto, passam a ser capazes automaticamente ou
será necessária uma sentença de levantamento da interdição?
A resposta é: todos aqueles que estavam
interditados passaram a ser automaticamente capazes por força da vigência do
Estatuto da Pessoa com Deficiência, independentemente de nova decisão judicial.
Alguns argumentos são a base dessa orientação.
A – Lei de estado tem eficácia imediata.
A capacidade (ou a incapacidade), assim como a
maioridade (ou menoridade) são indicativos do estado da pessoa natural. Apesar
de se imaginar que apenas a situação familiar é indicativa de estado civil
(solteiro, casado, divorciado etc), a capacidade também faz parte dessa
qualidade.
As leis de estado têm eficácia imediata e atingem
todos que se encontram naquela situação. Exemplifico. Quando o Código
Civil de 2002 reduziu a idade da capacidade civil (de 21 anos para 18 anos), em
janeiro de 2003 (início da vigência do atual Código), todas as pessoas que
tinham 18, 19 e 20 anos passaram a ser automaticamente maiores, logo capazes,
mesmo tendo nascido na vigência do antigo Código Civil. Mudou a lei, mudou o
estado da pessoa natural automaticamente.
Pergunta que se lança: por que quando a Emenda
Constitucional 66-2010 aboliu a separação judicial por força da alteração do
art. 226, par. 6º da Constituição, todas as pessoas separadas judicialmente não
passaram, automaticamente, para o estado de divorciados?
Estamos também tratando de lei de Estado, é
verdade, mas nessa situação a situação de casado, separado judicialmente ou
divorciado pressupõe a vontade da pessoa natural. Estamos diante de atos
jurídicos em sentido amplo (para alguns seriam negócios jurídicos inclusive),
ou seja, sem o elemento vontade eles sequer existem. A mudança da lei não
transforma casados em divorciados, nem separados em divorciados, nem solteiros
em casados.
Assim, a capacidade em razão da idade ou de uma
doença é um fato natural que não depende da vontade. É a lei que cincede ou
retira, queria o sujeito ou não. Por essa razão não se pode comparar a mudança
de estado em razão da idade ou ou doença (fato jurídico) com a separação ou
divórcio (vontade é a base).
B – A automática capacidade está de acordo com o
espírito do Estatuto.
Os dispositivos do Estatuto, cujo objetivo é a
inclusão da pessoa com deficiência, concedem à pessoa com deficiência
capacidade plena (arts. 6 e 84 do Estatuto).
Aliás, o próprio Estatuto sequer permite que a
interdição subsista (o processo desapareceu do sistema). Pode haver um processo
de nomeação do curador ou de tomada de decisão apoiada (vide art. 85 do
Estatuto).
A redação da lei não deixa dúvida que mudou-se a
concepção de curatela! É medida excepcional e exige maiores investigações da
situação da pessoa para se deferir a curatela, bem como definir sua extensão.
Vejamos a nova redação dos artigos do Código Civil:
“Art. 1.771. Antes de se pronunciar acerca
dos termos da curatela, o juiz, que deverá ser assistido por equipe
multidisciplinar, entrevistará pessoalmente o interditando.”
“Art. 1.772. O juiz determinará, segundo as
potencialidades da pessoa, os limites da curatela, circunscritos às restrições
constantes do art. 1.782, e indicará curador.
Parágrafo único. Para a escolha do curador, o juiz
levará em conta a vontade e as preferências do interditando, a ausência de
conflito de interesses e de influência indevida, a proporcionalidade e a
adequação às circunstâncias da pessoa.”
Nas antigas e atuais interdições, nada disso
foi considerado. Não houve equipe multidisciplinar, nem houve análise das
potencialidades da pessoa com deficiência. Essas são razões preponderantes para
as interdições não subsistirem.
C – Não há lei que justifique a incapacidade da
pessoa com deficiência.
Agora temos um derradeiro argumento. As sentenças
foram proferidas sobre dispositivos já revogados. Não há como sem manter
decisão com base em lei revogada.
Explico. A interdição leva em conta a incapacidade.
Se não há incapacidade em razão de doença ou deficiência, a propositura de uma
ação para comprar a revogação do texto de lei seria processo inútil e custoso.
Qual seria o contraditório a ser estabelecido? Sobre a revogação dos
dispositivos do CC? E seria custoso em termos de esforço do Poder Judiciário
para dizer o óbvio: não há mais interdição, nem incapacidade em razão de deficiência.
Em suma, não mais qualquer pessoa interditada por
deficiência, com base nos incisos II e III do art. 3º do CC, nem com base no
art. 4o, III do CC, desde janeiro de 2016, independentemente de nova decisão
judicial.
[1] Advogado. Professor Associado da Faculdade de
Direito do Largo de São Francisco/USP. Livre-docente, Doutor e Mestre em Direito
Civil pela USP. Professor e coordenador do CPJUR. Diretor Nacional e Estadual
do IBDFAM. Autor da Editora Atlas.
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