STF encerra o julgamento sobre a
inconstitucionalidade do art. 1.790 do Código Civil. E agora?[1]
por Flávio Tartuce 06.jun.2017
Finalmente,
o Supremo Tribunal Federal encerrou, no último dia 10 de maio de 2017, o
julgamento sobre a inconstitucionalidade do art. 1.790 do Código Civil. Após
pedido de vistas do Ministro Marco Aurélio, dois processos foram julgados em
definitivo, ambos com repercussão geral (Temas 498 e 809).
O
primeiro deles foi o Recurso Extraordinário n. 878.694/MG (Tema 809), que teve
como Relator o Ministro Luís Roberto Barroso. Tal julgamento teve início em
agosto de 2016, já havendo desde então sete votos pela inconstitucionalidade da
norma, na linha do proposto pela relatoria. Votaram nesse sentido os Ministros
Luiz Edson Fachin, Teori Zavascki, Rosa Weber, Luiz Fux, Celso de Mello e
Cármen Lúcia, além do próprio Ministro Barroso. Após pedido de vistas do
Ministro Dias Toffoli, o processo retomou seu destino neste ano de 2017, tendo
esse último julgador concluído pela constitucionalidade da norma, pois haveria
justificativa constitucional para o tratamento diferenciado entre o casamento e
a união estável (voto prolatado no último dia 30 de março). O Ministro Marco
Aurélio pediu novas vistas, unindo também o julgamento do Recurso
Extraordinário n. 646.721/RS, que tratava da sucessão de companheiro
homoafetivo, do qual era Relator, justamente o segundo processo (Tema 498).
Em maio
de 2017 foram retomados os julgamentos das duas demandas, iniciando-se pela
última. Para começar, o Ministro Marco Aurélio apontou não haver razão para a
distinção entre a união estável homoafetiva e a união estável heteroafetiva, na
linha do que fora decidido pela Corte quando do julgamento da ADPF 132/RJ, em
2011. Porém, no que concerne ao tratamento diferenciado da união estável diante
do casamento, asseverou não haver qualquer inconstitucionalidade, devendo ser
preservado o teor do art. 1.790 do Código Civil, na linha do que consta do art.
226, § 3º do Texto Maior que, o tratar da conversão da união estável em
casamento, reconheceu uma hierarquia entre as duas entidades familiares. Ao
final, restou vencido, prevalecendo a posição dos Ministros Luís Roberto
Barroso, Luiz Edson Fachin, Rosa Weber, Luiz Fux, Celso de Mello, Cármen Lúcia
e Alexandre de Moraes. Frise-se que o último julgador não votou no processo
anterior – pois ainda era magistrado o Ministro Teori Zavascki –, mas prolatou
sua visão na demanda envolvendo a sucessão homoafetiva. Com o Relator, apenas
votou o Ministro Ricardo Lewandowski, que adotou a premissa in dubio pro
legislatore.
Assim, o
placar do julgamento do Tema 498 foi de 8 votos a 2, ausente o Ministro Dias
Tofolli. Conforme consta da publicação inserida no Informativo n. 864 da
Corte, “o Supremo Tribunal Federal (STF) afirmou que a Constituição prevê
diferentes modalidades de família, além da que resulta do casamento. Entre
essas modalidades, está a que deriva das uniões estáveis, seja a convencional,
seja a homoafetiva. Frisou que, após a vigência da Constituição de 1988, duas
leis ordinárias equipararam os regimes jurídicos sucessórios do casamento e da
união estável (Lei 8.971/1994 e Lei 9.278/1996). O Código Civil, no entanto,
desequiparou, para fins de sucessão, o casamento e as uniões estáveis. Dessa
forma, promoveu retrocesso e hierarquização entre as famílias, o que não é
admitido pela Constituição, que trata todas as famílias com o mesmo grau de
valia, respeito e consideração. O art. 1.790 do mencionado código é inconstitucional,
porque viola os princípios constitucionais da igualdade, da dignidade da pessoa
humana, da proporcionalidade na modalidade de proibição à proteção deficiente e
da vedação ao retrocesso”.
Quanto ao
processo original, o que iniciou o julgamento da questão (RE 878.694/MG) apenas
se confirmou o que estava consolidado desde o ano passado, entendendo pela
constitucionalidade do art. 1.790 do Código Civil os Ministros Marco Aurélio e
Ricardo Lewandowski, e mantendo-se a coerência de posições com a demanda
anterior. Neste primeiro processo, o placar foi de 8 a 3, portanto (Tema 809).
Mais uma vez, conforme consta do Informativo n. 864 do STF, “o Supremo
Tribunal Federal afirmou que a Constituição contempla diferentes formas de
família, além da que resulta do casamento. Nesse rol incluem-se as famílias
formadas mediante união estável. Portanto, não é legítimo desequiparar, para
fins sucessórios, os cônjuges e os companheiros, isto é, a família formada por
casamento e a constituída por união estável. Tal hierarquização entre entidades
familiares mostra-se incompatível com a Constituição. O art. 1.790 do Código
Civil de 2002, ao revogar as Leis 8.971/1994 e 9.278/1996 e discriminar a
companheira (ou companheiro), dando-lhe direitos sucessórios inferiores aos
conferidos à esposa (ou ao marido), entra em contraste com os princípios da
igualdade, da dignidade da pessoa humana, da proporcionalidade na modalidade de
proibição à proteção deficiente e da vedação ao retrocesso”.
Por fim,
ficou destacado que, com a finalidade de preservar a segurança jurídica, o
entendimento sobre a inconstitucionalidade do art. 1.790 do Código Civil deve
ser aplicado apenas aos inventários judiciais em que a sentença de partilha não
tenha transitado em julgado e às partilhas extrajudiciais em que ainda não haja
escritura pública. A tese final firmada, para os devidos fins de repercussão
geral, foi aquela conhecida desde o ano passado: “no sistema constitucional
vigente, é inconstitucional a diferenciação de regimes sucessórios entre cônjuges
e companheiros, devendo ser aplicado, em ambos os casos, o regime estabelecido
no artigo 1.829 do Código Civil”.
Relembro
que sempre estive filiado à corrente que via inconstitucionalidade apenas no
inciso III do art. 1.790 do Código Civil, por colocar o convivente em posição
de desprestígio ante os ascendentes e colaterais até o quarto grau, recebendo
um terço do que esses recebessem. Aliás, alguns Tribunais Estaduais tinham
reconhecido a inconstitucionalidade desse último diploma, por meio do seu Órgão
Especial, caso do Tribunal de Justiça do Paraná e do Tribunal de Justiça do Rio
de Janeiro. Entretanto, reitero que o momento é de aceitar a decisão do STF,
conforme expunham dois dos nossos grandes sucessionistas, os Professores Zeno
Veloso e Giselda Hironaka, citados no julgamento. A principal vantagem do
decisum é resolver a grande instabilidade jurídica sucessória verificada no
Brasil desde a vigência do Código Civil de 2002, colocando fim a debates sobre
a inconstitucionalidade ou não do art. 1.790 do Código Civil.
Assim,
tendo sido esse o julgamento final, como ficam os processos de inventário em
curso? E os novos processos? Como devem ser elaboradas as escrituras públicas
de inventários pendentes em Tabelionatos de Notas de todo o País? O companheiro
passa a ser herdeiro necessário? A equiparação entre a união estável e o
casamento é para todos os fins sucessórios? Atinge também todos os fins
familiares? E agora? Tentaremos aqui responder tais dúvidas, pelo menos
brevemente.
De
início, tendo prevalecido essa forma de julgar, além da retirada do sistema do
art. 1.790 do Código Civil, o companheiro passa a figurar ao lado do cônjuge na
ordem de sucessão legítima (art. 1.829). Desse modo, concorre com os
descendentes o que depende do regime de bens adotado. Concorre também com os
ascendentes o que independe do regime. Na falta de descendentes e de
ascendentes, o companheiro recebe a herança sozinho, como ocorre com o cônjuge,
excluindo os colaterais até o quarto grau (irmãos, tios, sobrinhos, primos,
tios-avôs e sobrinhos-netos). Ressalto que tenho visto na imprensa várias
notícias fazendo cálculos equivocados da divisão patrimonial, sem levar em
conta o regime de bens adotado no casamento, o que é fundamental não só para a
meação, como também para a sucessão, pelo que consta o primeiro inciso da
última norma.
Na
publicação do acórdão foi mantida a modulação dos efeitos reconhecida em 2016,
sem qualquer ressalva, apesar de debates no julgamento final. Conforme o voto
do Ministro Barroso, “é importante observar que o tema possui enorme
repercussão na sociedade, em virtude da multiplicidade de sucessões de
companheiros ocorridas desde o advento do CC/2002. Assim, levando-se em
consideração o fato de que as partilhas judiciais e extrajudiciais que versam
sobre as referidas sucessões encontram-se em diferentes estágios de
desenvolvimento (muitas já finalizadas sob as regras antigas), entendo ser
recomendável modular os efeitos da aplicação do entendimento ora afirmado.
Assim, com o intuito de reduzir a insegurança jurídica, entendo que a solução
ora alcançada deve ser aplicada apenas aos processos judiciais em que ainda não
tenha havido trânsito em julgado da sentença de partilha, assim como às
partilhas extrajudiciais em que ainda não tenha sido lavrada escritura pública”
(STF, Recurso Extraordinário n. 878.694/MG, Relator Ministro Luís Roberto
Barroso).
Em suma,
a tese da repercussão geral aplica-se, sim, aos processos de inventário em
curso, desde que não haja decisão transitada em julgado, sem pendência de
recurso. Por outra via, em havendo sentença ou acórdão aplicando o art. 1.790
da codificação material, esse deve ser revisto em superior instância, com a
subsunção do art. 1.829 do Código Civil. Em relação aos inventários extrajudiciais
pendentes, as escrituras públicas devem ser elaboradas com o novo tratamento
dado pela nossa Corte Máxima. Em todos esses casos, as afirmações valem desde
que a sucessão tenha sido aberta a partir de 11 de janeiro de 2003, conforme
determina o art. 2.041 do Código Civil de 2002, in verbis: “as
disposições deste Código relativas à ordem da vocação hereditária (arts. 1.829
a 1.844) não se aplicam à sucessão aberta antes de sua vigência, prevalecendo o
disposto na lei anterior (Lei n. 3.071, de 1º de janeiro de 1916)”.
Apesar do
alerta anterior feito por parte da doutrina, algumas questões ficaram pendentes
no julgamento do STF. A primeira delas diz respeito à inclusão ou não do
companheiro como herdeiro necessário no art. 1.845 do Código Civil, outra
tormentosa questão relativa ao Direito das Sucessões e que tem numerosas
consequências. O julgamento nada expressa a respeito da dúvida. Todavia, lendo
os votos prevalecentes, especialmente o do Relator do primeiro processo, a
conclusão parece ser positiva. Como consequências, alguns efeitos podem ser
destacados. Vejamos apenas três deles, pela dimensão inicial deste artigo: a)
incidência das regras previstas entre os arts. 1.846 e 1.849 do CC/2002 para o
companheiro, o que gera restrições na doação e no testamento, uma vez que o
convivente deve ter a sua legítima protegida, como herdeiro reservatário;
b) o companheiro passa a ser incluído no art. 1.974 do Código Civil,
para os fins de rompimento de testamento, caso ali também se inclua o cônjuge; c)
o convivente tem o dever de colacionar os bens recebidos em antecipação (arts.
2.002 a 2.012 do CC), sob pena de sonegados (arts. 1.992 a 1.996), caso isso
igualmente seja reconhecido ao cônjuge.
No que
concerne ao direito real de habitação do companheiro, também não mencionado nos
julgamentos, não resta dúvida da sua existência, na linha do que vinham
reconhecendo a doutrina e a jurisprudência superior. Nesse sentido, entre os
acórdãos mais recentes: “o Código Civil de 2002 não revogou as disposições
constantes da Lei n. 9.278/96, subsistindo a norma que confere o direito real
de habitação ao companheiro sobrevivente diante da omissão do Código Civil em
disciplinar tal matéria em relação aos conviventes em união estável, consoante
o princípio da especialidade” (STJ, AgRg no REsp 1.436.350/RS, Rel. Ministro
PAULO DE TARSO SANSEVERINO, TERCEIRA TURMA, julgado em 12/04/2016, DJe
19/04/2016).
Mas qual
a extensão desse direito real de habitação ao companheiro? Terá o direito
porque subsiste no sistema o art. 7º, parágrafo único, da Lei n. 9.278/1996, na
linha do último julgado? Ou lhe será reconhecido esse direito real de forma
equiparada ao cônjuge, por força do art. 1.831 do Código Civil? Como é notório,
os dois dispositivos têm conteúdos distintos. O Supremo Tribunal Federal não
enunciou expressamente essa questão, apesar de tender à última resposta,
cabendo à doutrina e à própria jurisprudência ainda resolvê-la.
Por
derradeiro, a equiparação feita pelo STF também inclui os devidos fins
familiares sendo, portanto, total? Há quem entenda que sim, caso de José
Fernando Simão e Mário Luiz Delgado, para os quais a união estável passa a ser
um casamento forçado. Lembro, como sempre pontuo, que o Novo Código de
Processo Civil já fez essa equiparação, para quase todos os fins processuais.
Apesar de
ser uma posição louvável – retirada notadamente do voto do Ministro Barroso –,
penso que devemos dar tempo ao tempo, como tem pontuado Giselda Hironaka
em suas exposições sobre o assunto. A propósito, surge corrente respeitável,
encabeçada por Anderson Schreiber e outros, no sentido de haver equiparação
somente para os fins de normas de solidariedade, caso das regras
sucessórias, de alimentos e de regime de bens. Em relação às normas de
formalidade, como as relativas à existência formal da união estável e do
casamento, aos requisitos para a ação de alteração do regime de bens do
casamento (art. 1.639, § 2º do CC e art. 734 do CPC) e às exigências de
outorga conjugal, a equiparação não deve ser total. Confesso que essa última e
novel posição tem me seduzido.
De toda
sorte, vejamos qual será o rumo que a civilística brasileira tomará nos
próximos anos. Como se pode perceber, os julgamentos do Supremo Tribunal
Federal resolveram um aspecto importante, qual seja a retirada do art. 1.790 do
Código Civil do sistema sucessionista nacional. Porém, alguns rastros ficaram.
Temos algumas pistas, mas não o caminho definitivo para todos os problemas.
[1]
Publicado na coluna Família e Sucessões, do mês de maio de 2017, no informativo
jurídico digital Migalhas (www.migalhas.com.br).
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