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13 de dezembro de 2014
O que não está nos autos, não está no mundo? E a jurisprudência, onde
está?
Discussões
em época de Novo CPC…
Por Dierle Nunes*
Desde o processo comum, que seguia por inúmeras
contingências uma matriz de processo escrito, [1] se convolou a premissa
interpretativa no discurso processual de que o que estivesse fora dos autos
processuais não existiria para o debate processual (“Quod non est in actis
non est in mundo”… como no título) e, de lá paracaá,
esta sempre foi uma máxima relevante do sistema jurídico.
No entanto, nos dias atuais, ao se verificar o modo
como ocorrem os julgamentos pelos juízes e tribunais no Brasil parece que, em
face da massiva carga de trabalho (entre outros fatores), o brocardo foi
corrompido de tal modo que o debate acerca do direito se tornou um conjunto de
imperscrutáveis fundamentos para as partes, previstos num banco de dados prévio
de decisões modelares (adaptáveis a casos idênticos) e num banco de ementas,
julgados e enunciados de súmulas que espera a colheita self service do
aplicador em consonância com o interesse de confirmação de seu próprio
entendimento (confirmation bias).[2]
Isto significa que em face dos imperativos da
eficiência quantitativa não existe uma preocupação com a análise da
jurisprudência em conformidade com um viés analógico e comparativo com o caso
atual e os fundamentos determinantes dos precedentes, desde o leading case.
Tudo se dá mediante uma comparação pobre de
conformidade entre o caso em julgamento e a ementa de um julgado anterior que
“parece” se tratar da mesma hipótese de aplicação.
O debate processual acerca do direito é proscrito
para fora da ótica processual. Se percebe, assim, que a análise jurídica
depende de “dados”, julgados, que irão, no mais das vezes, fugir ao debate
processual até o momento de sua apresentação como fundamento decisório.
A “jurisprudência” que deveria ter seus fundamentos
determinantes submetidos ao contraditório antecipadamente, ou seja, nos autos,
somente ingressa na “discussão” diretamente nas decisões, de surpresa, sem
permitir a análise acerca de sua adequação e coerência com a hipótese de
incidência.
No entanto, é hora de retornar com este debate
jurisprudencial para dentro do devido processo legal.
Não se pode olvidar que hoje, num sistema jurídico
no qual o processo é dimensionado à partir do modelo constitucional de
processo, não é mais possível tolerar o fenômeno da surpresa decisória, por
descumprimento à garantia do contraditório em sua faceta dinâmica
(substancial).
Deste modo, no que tange à formação de precedentes
e em sua aplicação, os Tribunais são compelidos a levar em consideração todos
os argumentos jurídicos suscitados pelas partes em análise verdadeiramente
colegiada.
Esta compreensão deontológica do “modelo
constitucional” induz uma formação mais panorâmica das fundamentações
decisórias para que delas se extraiam, com maior clareza e amplitude (em face
de seu uso em casos repetitivos), as ratione decidendi a serem aplicadas no
caso atualmente em análise, com precisão.
Do mesmo modo, isto induz que estes fundamentos
determinantes sejam do debate de seus fundamentos por todos os decisores, em
combate à patologia da pseudo-colegialidade;[3]fenômeno cada vez mais
comum entre nós.
Ou seja, a jurisprudência deve ser reposta em seu
lugar no discurso de de aplicação.
Por esta razão, muito bem vindo será o Novo CPC,
de aprovação próxima, na medida em que a nova legislação obrigará que os
precedentes:[4] a) sejam formados e
aplicados com coerência, integridade e estabilidade (art. 924, caput, do
CPC Projetado com redação do Relatório Vital do Rêgo de 04.12.14); b) que sejam
formados somente com argumentos submetidos ao contraditório, [5] visto como garantia de
influência e não surpresa (art. 10); c) e seu efeito vinculante decorra da
adoção dos mesmos fundamentos determinantes pela maioria dos membros do
colegiado, [6] cujo entendimento tenha
ou não sido sumulado, [7]inexistindo
possibilidade de uso de ratio decidendi que não tenha sido predominante
e debatida no colegiado.[8]
Todos estes imperativos buscam recolocar o debate
jurídico processual nos trilhos (nos autos), ao alcance do contraditório como
influência e não surpresa, e permitir a criação de um sistema no qual o direito
jurisprudencial deixe de ser uma chaga (com seu uso lotérico e arbitrário) e
auxilie no delineamento de uma aplicação jurídica legítima e consonante com a
segurança jurídica e o devido processo constitucional. Para tanto, todos devem
entender bem todas as novas premissas que a legislação projetada trará.
*Dierle Nunes é
advogado, doutor em Direito Processual, professor adjunto na PUC Minas e na
UFMG e sócio do escritório Câmara, Rodrigues, Oliveira & Nunes Advocacia (CRON Advocacia).
Membro da Comissão de Juristas que assessorou na elaboração do Novo Código
de Processo Civil na Câmara dos Deputados.
NOTAS
[1] Especialmente a partir
do processo ítalo-canônico com seu formalismo característico que exigia a
redução de todos os termos a escrito. Aqui, no entanto, a abordagem se limita à
necessidade do debate ingressar, ou não, ao processo.
[2] “Estudos empíricos
(psicológicos e jurídicos), realizados com magistrados americanos, demonstram
que o juiz sofre propensões cognitivas que o induzem a usar atalhos para
ajudá-lo a lidar com a pressão da incerteza e do tempo inerentes ao processo
judicial. É evidenciado que mesmo sendo experiente e bem treinado, sua
vulnerabilidade a uma ilusão cognitiva no julgamento solitário influencia sua
atuação. Um exemplo singelo encontrado nas pesquisas, que aclara esta situação,
é a propensão do magistrado que indefere uma liminar a julgar, ao final,
improcedente o pedido. Por um efeito de bloqueio ficou demonstrado que o juiz
fica menos propenso à mudança de sua decisão mesmo à luz de novas informações
ou depois de mais tempo para a reflexão. Tal bloqueio cognitivo ocorre por
causa da tendência a querer justificar a alocação inicial de recursos (fuga ao
retrabalho), confirmando que a decisão inicial estava correta. Tal constatação
deve induzir o fomento ao debate como ferramenta de quebra das ilusões e
propensões cognitivas. E aqui poderíamos ampliar no caso brasileiro para o uso
de ementas de julgados e súmulas sem reflexão e como âncoras facilitadoras dos
julgamentos, com o único sentido privado de otimizar numericamente o número de
decisões. Faz-se uso de súmulas e “precedentes” sem a devida recuperação do (s)
caso (s) paradigma (s), valendo-se apenas de ementas ou do pequeno texto das súmulas,
como se uns e outros pudessem ter algum sentido sem aquilo (os casos) que lhes
deram origem e se confundindo a ratio decidendi (fundamento determinante)
com algum trecho da ementa ou do voto. Ademais, não podemos nos olvidar da
denúncia empreendida por Carlos Maximiliano por mera observação, em 1925, de
que os profissionais tendem à lei do menor esforço no uso do direito
jurisprudencial. O jurista jamais imaginaria como este uso seria mais
vocacionado ao que criticava e que estudos empíricos atuais informaria que isto
decorreria inclusive da propensão de confirmação (confirmation bias) que
induz o intérprete a um raciocínio distorcido, de uso e confirmação de todo
material (v. G. Provas, julgados) que atesta uma versão dos fatos (que
acredita) e negligencia e desprezo a tudo que a contradiz. Tal percepção de
contaminação cognitiva e ausência de neutralidade em outros países induz a
promoção de estudos sérios com a finalidade de criação de contramedidas. O National
Center for State Courts (NCSC), por exemplo, organizou um projeto piloto de
três estados (Califórnia, Minnesota e Dakota do Norte) para ensinar juízes e
funcionários do tribunal sobre as propensões do magistrado ao julgar em matéria
que envolva preconceito. Em verdade, foi necessário demonstrar cientificamente
aos juízes sobre as cognições sociais implícitas, os problemas destas
propensões cognitivas (para tomada das apontadas e contramedidas técnico
processuais) e os riscos que elas trazem para o bom julgar, inclusive
aumentando a importância do sistema recursal. Todas estas constatações que
mostram a autenticidade de preocupações acadêmicas envolvendo a crítica ao
solipsismo e protagonismo judiciais, de um lado, e com a busca estratégica de
sucesso, inclusive de má-fé, além da atecnia, por parte dos advogados, de
outro, demonstram empiricamente a existência do problema e a necessidade de
dimensionamento de contramedidas processuais com a finalidade de esvaziar e
controlar os comportamentos não cooperativos e contaminados de todos os
sujeitos processuais[…]” NUNES, Dierle; BAHIA, Alexandre. Processo e república:
uma relação necessária. Disponível em: http://justificando.com/2014/10/09/processoerepublica-uma-relacao-necessaria
[3] NUNES, Dierle. É
preciso repensar o modo como os tribunais vêm atuando. http://www.conjur.com.br/2014-jun-11/dierle-nunes-preciso-repensar-modo-tribunais-atuam
[4] NUNES, Dierle; DELFINO,
Lúcio. Novo CPC,
enunciados de súmula e pseudo colegialidade. http://justificando.com/2014/08/28/novo-cpc-enunciados-de-sumulaepseudo-colegialidade/
[5] Conforme o Enunciado n.
2 do Fórum Permanente de Processualistas Civis (FPPC): (art. 10; art. 925, §
1º) Para a formação do precedente, somente podem ser usados argumentos
submetidos ao contraditório. (Grupo: Precedentes 2). Salvador, 2013.
[6] NUNES, Dierle. É
preciso repensar o modo como os tribunais vêm atuando. http://www.conjur.com.br/2014-jun-11/dierle-nunes-preciso-repensar-modo-tribunais-atuam
[7] Conforme o Enunciado do
Fórum Permanente de Processualistas Civis (FPPC). Belo Horzonte, 2014.
[8] Conforme o Enunciado do
Fórum Permanente de Processualistas Civis (FPPC). (art. 925). Os fundamentos
não adotados ou referendados pela maioria dos membros do órgão julgador não
possuem efeito de precedente vinculante. (Grupo: Precedentes). Belo
Horizonte, 2014.
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