Justiça com as próprias mãos: a sociedade e o direito
Publicado
por Daniel
Marques de Camargo - 2 semanas atrás
Houve um
tempo em que o controle social era todo baseado na vingança privada, na regra
do mais forte ante a ausência de um Estado fortalecido, a partir da autotutela
(autodefesa) ou da autocomposição entre as partes (desistência, submissão ou
transação), cuja essência se prestigia mesmo na atualidade.
Não
obstante, a parcialidade das decisões foi cedendo espaço para a figura dos
árbitros, dos pretores e, por fim, do Estado-juiz, momento em que a justiça que
até então era eminentemente privada passa para a gleba da justiça pública. A
discussão posta em juízo já não mais se resolve somente entre as partes, pois
há a triangularização da relação jurídica, ou seja, há o Estado-juiz entre as
partes, mas acima delas.
A
despeito da evolução no resolver dos conflitos exsurgentes das relações sociais
do dia a dia, ainda atualmente o ordenamento jurídico pátrio (e também de
outros países) autoriza a autotutela, como via de exceção. O Código
Civil, por exemplo, homenageia o direito de retenção ao possuidor de
boa-fé que tenha realizado benfeitorias necessárias no imóvel (art. 1.219, CC),
o desforço imediato (art. 1.210, CC)
e o penhor legal (art. 1470, CC).
Do mesmo
modo, o Código Penal prestigia a autotutela como meio de defesa do
indivíduo ao mal injusto causado, não configurando crime a prática do fato
cometido em estado de necessidade, legítima defesa ou no estrito cumprimento do
dever legal, bem como no exercício regular de direito, consoante previsão do
art. 23 do CP, além da própria prisão em flagrante delito que pode ser
realizada por qualquer do povo, conforme se denota da leitura do art. 301 do CPP.
Ademais
as possibilidades referenciadas acima, há também a autotutela no direito
administrativo, quando o administrador público tem a prerrogativa de anular os
atos da Administração eivados de vícios que os tornem ilegais, ou ainda
revogá-los por critérios de conveniência e oportunidade (vide súmula 473
do STF e art. 53 da Lei 9.784/99 – Processo Administrativo), bem como no
direito do trabalho, a exemplo do direito de greve do trabalhador (arts. 9º
e 37,
VIII, ambos da CF; Lei 7.783/89
– Lei de Greve).
Nota-se,
pois, que o Direito não proíbe de todo a autotutela, reservando-a para casos
excepcionais em que a tutela do Estado não pode ou não necessita estar
presente.
Inobstante,
falece de guarida judicial aquelas ações em que o indivíduo extrapola os
limites do homem médio e, ao defender-se de um mal injusto, comete crime mais
grave em desproporção àquele sofrido inicialmente, porque não permitidas pelo
poder estatal. Por outras palavras, a autotutela é exercida pelo indivíduo, mas
ainda assim é uma ação coercitiva do próprio Estado, porquanto prevista em Lei,
estando apenas descentralizada. Hans Kelsen assim conceitua:
“Este
monopólio da coação está descentralizado quando os indivíduos que têm
competência para a execução dos atos coativos estatuídos pela ordem jurídica
não têm o caráter de órgãos especiais, funcionando segundo o princípio da
divisão do trabalho, mas é aos indivíduos que se consideram lesados por uma
conduta antijurídica de outros indivíduos que a ordem jurídica atribui o poder
de utilizar a força contra os violadores do Direito – ou seja, quando ainda
perdura o princípio da autodefesa” (KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. Trad.
João Baptista Machado. 8ª ed. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2009, p. 40).
Igualmente,
a autotutela não pode servir de incentivo para a prática de toda sorte de
crimes, de modo que a sua aplicação deve ser dada de forma restrita, a fim de
que não se retire do Estado o monopólio estatal da jurisdição, sob pena de
incorrer no crime previsto no art. 345 do CP, de exercício arbitrário das próprias razões, sem prejuízo
de outras cominações legais.
Deste modo,
o trabalhador não pode organizar greve que extrapole os seus direitos, fira os
direitos do empregador e os direitos do consumidor; o administrador público não
pode revogar ou anular atos em inobservância aos direitos adquiridos, à coisa
julgada ou ao ato jurídico perfeito; assim como o cidadão não pode agir em
desproporcionalidade à resposta contra o mal sofrido, pois estará sujeito a
responder pelos crimes que praticar.
Impende
assinalar que a autotutela permitida de forma excepcional pelo ordenamento jurídico,
sobretudo na seara do direito penal, não pode ser confundida com as ações
criminosas e igualmente bárbaras de indivíduos ou grupos de pessoas que se
reúnem para fazer “justiça com as próprias mãos”, porquanto se trata
notadamente de vingança privada não somente contra o suspeito ou criminoso
confesso, mas contra a Constituição e toda a sociedade.
Nesta
senda, a (falsa) ideia de justiça com as próprias mãos reflete os instintos
mais selvagens e primatas do homem que se pretende moderno. É o momento em que
há total abdicação ao “pacto” social, em que o justiceiro faz a sua própria
lei, acusador e juiz a um só tempo, algoz que vinga os males cometidos pelos
transgressores da lei.
Não se
pode olvidar, todavia, que, à medida que o Estado se ausenta da tutela dos
direitos dos cidadãos, agrava-se a incidência de condutas criminosas praticadas
por cidadãos como forma de fazer (pseudo) justiça. De modo que se faz
necessário o aumento da crença no Poder Judiciário para que a ideia repetida
por Thomas Hobbes não se concretize e o homem volte a ser o lobo do próprio
homem, em supressão do Estado Democrático de Direito.
Afinal,
um erro, certamente, não justifica o outro.
Daniel
Marques de Camargo. Advogado, Professor Universitário, Mestre em Ciência Jurídica e autor
de obras jurídicas diversas.
Hugo
Pires.
Professor de redação do ensino fundamental e médio, acadêmico de Direito e
pós-graduando em Direito Civil e Processual Civil.
Mestre em
Ciência Jurídica UENP. Especialista em Direito Processual Civil. Professor
titular de TGP e Direito Processual Civil. Professor de Pós-Graduação em
Direito Processual Civil. Advogado. Autor do livro Jurisdição crítica e
direitos fundamentais e de publicações jurídicas e coautor de diversas...
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